quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Higher Education


Docência na universidade ultrapassa preparação para mundo do trabalho

Ensinar e aprender é uma relação entre o que é conhecimento no sentido epistemológico e o que é o homem no sentido ontológico. Complexa, implica responsabilidades que nem sempre estão presentes na consciência do professor.

 
Profª. Drª Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira
Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

Artigo publicado em "Docência Universitária: concepções, experiências e dinâmicas de investigação". CERVI, G.M. e RAUSCH, R.B. (orgs). Meta Ed. 2014.
 
 
Introdução
 
A docência é uma atividade cujos significados para o aluno assumem proporções que ultrapassam a sala de aula e perduram em sua formação. O que orienta os docentes em sua ação pedagógica está vinculado com as respostas que ele dá àquilo que, para ele, é o fim último da formação do aluno. O processo de ensino e aprendizagem desenvolvido na universidade é um processo de formação do ser humano, do profissional e do cidadão, isto é, de um indivíduo que desempenha vários papéis na sociedade.
 
Não preparar para a autonomia no mundo de hoje, onde a comunicação é um dos principais fatores de ação política, profissional e pessoal, é fazer do estudante um servo do sistema, um cidadão sem condições de usar seus direitos, um profissional sem capacidade de pensar a sociedade. A aquisição de conhecimentos, dinamizada pela ação docente e propiciada pelo currículo, pelas disciplinas, pelos conteúdos, embora inicialmente não preveja um alcance maior do que o de fazer com que o estudante adquira conhecimentos específicos, tem um substrato de permanência na formação mais ampla do aluno. Assim, quer o professor tenha consciência ou não, sua ação em sala de aula é uma ação de formação do homem, do profissional e do cidadão e por isso, é uma ação que ultrapassa a sala de aula.
 
Neste texto vamos explorar questões que são pedagógicas no sentido mais amplo, isto é, no sentido de formação do homem. Argumentaremos que a ação do docente na universidade tem para o aluno significados que ultrapassam a dimensão de prepará-los para o mundo do trabalho, pois o estudante ao apreendê-lo também está desenvolvendo uma descoberta de si, do mundo social, profissional e cultural. O ensinar e o aprender não é apenas uma relação direta entre conhecimentos e mente conhecedora, mas uma relação complexa entre o que é conhecimento no sentido epistemológico[1] e o que é o homem, no sentido ontológico[2]. Sendo uma relação complexa, esta função fundamental da universidade se reveste de importância e responsabilidades que nem sempre estão presentes na consciência do professor. Discutir alguns aspectos dessa complexidade é a intenção deste texto.
 
Processo de ensino e de aprendizagem: duas faces de uma mesma moeda
 
Para o processo de ensino e de aprendizagem ser significativo para o indivíduo como homem, profissional e cidadão, deve ter um compromisso com a preparação do aluno para autonomia intelectual, emocional, social, cultural, política e profissional.  A formação para a autonomia do aluno, nesses vários âmbitos, é o propósito do ensino na universidade desde a antiguidade e se reafirmou no modelo de universidade moderna instituído por Humboldt (1997) ao organizar, em 1810, a Universidade de Berlim[3], marco do modelo de universidade moderna.
 
Ao exercer a atividade docente, particularmente no nível da educação superior, o professor deve responder para si algumas perguntas: Como eu quero ser professor? Que formação quero dar ao aluno? Para qual universidade, ou seja, para que tipo de instituição de educação superior? Para que tipo de sociedade? Com que ideia de conhecimento estou trabalhando?
 
Parece óbvio que a resposta a essas questões seja: eu quero ser um professor que ensina; um professor que faça o aluno aprender e crescer; um professor que permita ao aluno construir seu conhecimento. Quero formar um profissional útil à sociedade, que favoreça o desenvolvimento de seu país, que contribua para o avanço do conhecimento e para uma sociedade democrática.
 
Estas respostas estão vinculadas a um processo mais crítico de ser professor e menos ao histórico do papel de professor na tradição da educação superior brasileira. Nessa tradição o professor, com raras exceções, entende que deve passar conhecimentos técnicos e específicos de sua disciplina e do curso. É uma tradição ligada à cultura universitária brasileira de única e exclusivamente formar profissionais para o mercado de trabalho. Ao seguir a tradição de ensinar os conteúdos técnicos de uma área profissional, o professor retoma a intenção que está vinculada com a definição do termo “professor”. O termo professor tem raiz na palavra “professar”, que significa ter a convicção, apregoar, reconhecer publicamente a validade do que é apresentado. Assim, um professor “professa” saberes e conhecimentos sistematizados para alunos que ainda não conhecem, para que estes os adquiram com a intenção de pô-los em prática. Com esse entendimento, a relação que se estabelece em sala de aula entre professor, aluno e conhecimentos é a de passar conteúdos. Cabe ao aluno apreendê-los e reapresentá-los por ocasião das avaliações.
 
No entanto, a relação de ensinar e aprender que se estabelece na relação professor-aluno é mais complexa que a simples transmissão de conteúdos, saberes e conhecimentos específicos. É complexa por ser uma relação mediada pelo contexto social, cultural, político e psicológico do professor e dos alunos. É complexa porque engloba aspectos que se estabelecem em qualquer interação social, uma vez que a ação docente é, além de educacional, uma ação social, psicológica e cultural. Os aspectos emocionais imbricados nessa relação têm grande significado na construção do conhecimento e são significativos tanto para os alunos que aprendem como para os professores que ensinam. São relações de confiança, de agregação de valores, de cultura, de empatia e de criação de elos afetivos.
 
A resposta à questão sobre para qual universidade o professor está ensinando é dada baseada no conceito de universidade que ele tem, no seu entendimento sobre qual é o papel desta instituição na atualidade. Normalmente o entendimento é o de que o papel da universidade é o de formar profissionais úteis e necessários à sociedade. A polissemia do termo útil nesta resposta pode nos levar a entender que estes profissionais devem ser os que o mercado de trabalho necessita, respondendo assim, às necessidades da sociedade e às necessidades do tempo histórico em que vivemos. Muitos defensores dessa forma de pensar entendem que a razão de ser de uma instituição de ensino superior é a de estar formando profissionais treinados e habilitados para o mercado de trabalho imediato, e com isso, entendem estar cumprindo o que chamam de ‘dever social da instituição de ensino superior’.
 
Essa lógica determina comportamentos e delineia expectativas sobre os papéis desempenhados pelos docentes, pelas instituições e pelos alunos. Leva a entender que se deve formar diplomados aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira. Nesse entendimento não há lugar para o desenvolvimento do ser humano e da sociedade no sentido mais amplo e não apenas o de mercado de trabalho. A ação docente fica limitada quando guiada por esse entendimento reducionista, uma vez que é desenvolvida em conformidade com as expectativas do papel docente na organização institucional. As expectativas de papéis são estruturas fixas e estereotipadas que, se não forem rompidas, impedem a transformação socioinstitucional, por assumirem caráter rígido e promoverem situações institucionais que dificultam as condições para a mudança (DOTTA, 2006).
 
O docente que não se interroga sobre suas intenções ao ensinar terá suas atitudes docentes guiadas por convenções externas, por imitação ou por padronização. A vinculação principal do ensinar está nas respostas às questões que ele faz a si mesmo sobre o seu propósito ao assumir a docência.
 
Docência e autonomia
 
Na universidade, o objetivo principal da formação do estudante é o de promover a sua  autonomia. Trabalhar a autonomia[4] é fazer o aluno adquirir autogoverno em todos os âmbitos de sua vida pessoal e profissional. Filosoficamente o conceito de autonomia implica na condição de liberdade que consiste na possibilidade do indivíduo tomar suas próprias decisões com base em sua razão, em conhecimentos fundamentados, em pensamento refletido, em conhecimento das possíveis consequências da decisão escolhida, em seus valores e em sua cultura. Paulo Freire (1996), em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, refere-se ao processo de contínua construção da autonomia, como um processo “inconcluso” de formação do ser homem. A “inconclusão do ser humano é um movimento permanente de aprender e se formar.
 
Newman (2001), um dos mais importantes estudiosos da universidade, um clássico da literatura acadêmica cujos escritos estão influenciando a área da universidade desde o século XIX, diz que a missão primeira da universidade é o compromisso com a formação do homem para a autonomia e defende que é essa a essência da atividade do ensinar na universidade.
 
Em Kant (1993), na obra “Conflitos das Faculdades”, obra voltada para a educação superior, a questão da autonomia ganha força e centralidade. Defende o sentido de autonomia considerando a formação da totalidade do ser humano e a racionalidade em sentido mais amplo que o instrumental. Essa definição traz consigo uma internalização das fontes morais, isto é, a fonte da força moral não pode mais ser vista como exterior a nós e só pode ser explicitada pelo exercício da autonomia. Em Kant, a ideia da natureza racional como fonte de dignidade humana e a própria ideia de dignidade estão inseparavelmente ligada à ideia de autonomia. 
 
A autonomia é, assim, o estado do indivíduo pleno como pessoa e profissional.  O compromisso do professor, particularmente no nível da educação superior, é com o desenvolvimento da autonomia do estudante nas dimensões intelectual, pessoal, emocional, social, profissional, cultural e política. Sendo estas as dimensões que devem ser trabalhadas na educação superior, a ação pedagógica docente se estende para muito além da ação de passar conteúdos, de treinar mentes e habilidades para uma atividade profissional, de capacitar para um desempenho técnico eficiente atendendo às necessidades do mercado de trabalho. Nessa dimensão, a ação pedagógica deve atender às necessidades do indivíduo, da sociedade e da humanidade – dimensões maiores do que a estreita especificidade técnica das competências profissionais.
 
Ao olhar o ensino como ação pedagógica vinculada ao desenvolvimento da autonomia como aqui descrita, o professor favorecerá que a educação seja feita para formação do homem, como diz Kant (1996, p. 15) na obra “Sobre a Pedagogia” – outra de suas obras voltadas para a questão pedagógica: “o homem não pode tornar-se verdadeiro homem senão pela educação".
 
Para ilustrar um pouco mais a importância do ensino superior com questões mais amplas que o simples propósito de formar profissionais, lembramos a famosa citação de Stuart Mill em seu discurso na Aula Inaugural da Universidade de Saint Andrews, em Londres, do início do ano letivo de 1867 (MILL, 1869/1999). A citação é longa, mas seu conteúdo elucida a importância do papel do professor, da educação e da formação do homem pela universidade antes que o profissional, já apontada naquela época:
 
Os homens são homens antes de serem advogados, médicos, comerciantes ou industriais; se os fizerdes homens capazes e sensatos, eles se transformarão por si mesmos em advogados ou médicos capazes e sensatos. Ao sair da universidade, os recém-formados não devem levar consigo conhecimentos profissionais, mas aquilo que é necessário para guiar o uso desses conhecimentos, para esclarecer os aspectos técnicos de seu trabalho à luz de uma cultura geral. Sem formação geral, alguém pode se tornar um advogado competente, mas não pode ser um advogado sábio. Acontece o mesmo com outras atividades, mesmo as rotineiras. A educação pode fazer de um homem um sapateiro mais inteligente, se tal deve ser o seu emprego, mas não lhe ensinando a fazer sapatos; a educação chegará a isso pelo exercício intelectual que ela impõe e pelos hábitos que engendra.
 
Com esta abrangência, o ato de ensinar se revela uma experiência ampla por ser um processo de construção de identidade, de construção de conhecimento, uma relação social, uma atividade política, uma função ética, uma ação criativa, uma prática com a pesquisa. Lembrando novamente Paulo Freire (1996) e sua convicção sobre a importância do ato de ensinar como um ato político: Freire argumentava que fazer do ensino uma ação técnica é “amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador” (p. 37).
 
O domínio amplo do conhecimento, a capacidade de decidir, de processar e selecionar informações, a criatividade e a iniciativa sempre foram objetivos da educação superior, mas neste atual tempo histórico adquiriu maior intensidade. Dessa forma, a autonomia para Giddens (1991) tornou-se uma necessidadeintelectual tanto quanto uma necessidade emocional. Uma vez que os indivíduos precisam desenvolver uma efetiva comunicação entre si, a autonomia traz a segurança do pensar e comunicar suas próprias ideias. A falta de autonomia intelectual impede a criação de novas ideias e no âmbito psicológico obstaculiza as discussões abertas e impede a manifestação plural. Não preparar para a autonomia no mundo de hoje, onde a comunicação é um dos principais fatores de ação política, profissional e pessoal é fazer do estudante um servo do sistema, um cidadão sem condições de usar seus direitos, um profissional sem capacidade de pensar a sociedade.
 
A autonomia é também uma necessidade sociocultural, uma vez que a atual sociedade traz um novo movimento cultural exigindo uma nova direção das relações políticas e somente um indivíduo autônomo possui condições de entender as contradições do mundo globalizado, questionando-as e agindo no sentido de canalizar as oportunidades para mudanças qualitativas da sociedade (GUIDDENS, 1991).
 
Com essa dimensão do ato de ensinar, pode-se afirmar que todo professor deve desenvolver uma reflexão crítica sobre sua prática docente. O professor que deixa de refletir sobre ela trabalha de forma mecânica, repetitiva, sem pensar os significados da relação ensino-aprendizagem no âmbito da formação do homem. Schön (1995), baseado na teoria de Dewey, deu maior relevância ao desenvolvimento do conceito de reflexão e sugere uma formação de profissionais reflexivos, dentre eles o próprio professor. Nessa perspectiva, o ambiente universitário para o docente torna-se lugar de investigação da própria ação docente. Para o autor, a reflexão-na-ação docente (enquanto a desenvolve) e a reflexão-sobre-a-ação (reflexão feita posteriormente sobre o que foi e como foi feita a ação docente) possibilitam que o professor utilize o seu próprio ensino como oportunidade de mudança de suas práticas diárias em sala de aula, mudança em relação a como constrói o conhecimento no aluno e mudança em como deseja fazer a relação universidade e sociedade.
 
Dewey (1980), psicólogo e educador americano, iniciador e defensor do processo de reflexão na formação do aluno, apresenta que são necessárias três atitudes para o processo de ensino e aprendizagem acontecer: a) abertura da mente; b) responsabilização;  c) reconfiguração.
 
A “abertura da mente” consiste em não tomar como prontos, acabados e imutáveis os conhecimentos científicos e os saberes profissionais. Leva a estar atento a diferentes interpretações, em permitir-se a incerteza e sempre problematizar os conteúdos.
 
A “responsabilização” é a segunda atitude apresentada por Dewey e implica no compromisso pessoal de buscar respostas próprias a toda situação de ensino para o professor, e de aprendizagem para o aluno. Compromisso com a reflexão sobre as consequências de cada resposta à situação vivenciada e sobre as possíveis direções de cada escolha feita nos âmbitos pessoal, acadêmico e político-social.  
 
A “reconfiguração” é a ação que procede das anteriores, onde ocorre a reorganização dos conceitos, valores, crenças e atitudes (pessoais, profissionais, sociais e políticas).
 
Quando se diz comumente que um professor não consegue ensinar a quem não deseja aprender, se demonstra a relação de abertura que o aluno deve ter para que o processo de aprendizagem aconteça. O ensino e aprendizagem são as duas facetas da mesma “moeda”. A imagem da moeda é uma visualização interessante, pois, ao mesmo tempo em que as duas faces são constituintes da moeda, elas são autônomas e diferentes, mas formam a unidade. Assim, podemos afirmar que no processo de ensino e de aprendizagem é necessário um grande envolvimento tanto do professor como do aluno. É necessária a automotivação do aluno para o aprender, mas é também necessária a postura do professor em olhar o aluno para além de um número na sala de aula, olhá-lo como um ser em desenvolvimento que busca sua identidade pessoal e profissional. 
 
Nosso comportamento como docente ainda está conformado pela tradição de entender o ensino mais como informação do que formação. Estes são aspectos  dimensionados quando se fala que ser professor envolve mais do que o conhecimento da área específica e a perspectiva de passar conteúdo. Envolve o necessário conhecimento pedagógico, a reflexão sobre o que é conhecimento, sobre o papel do profissional na sociedade, sobre o seu papel na formação da autonomia do aluno.
 
Docência na contemporaneidade
 
Qual é o compromisso do professor universitário no atual período histórico? Vivemos hoje em uma sociedade em que, cada vez mais, se lida com grande volume e volatilidade de informações. Esta situação nos faz, mais uma vez, refletir sobre a importância de se transcender a transitoriedade da situação de sala de aula focada somente no conteúdo especificamente profissional e fazer dela a oportunidade para trabalhar uma formação mais completa do aluno, isto é, trabalhar a sua formação intelectual, moral e cultural. Isto reforça o compromisso do professor com a autonomia do aluno. Para tal, muitos professores precisam operar mudanças em seu sistema de valores sobre o que é a docência, o ensino e a aprendizagem. Mudanças em sua forma de ver o aluno, o conhecimento, a sociedade, ultrapassando o que são as necessidades imediatas destes para trabalhar as necessidades mais perenes da humanidade.
 
A experiência de ensinar e aprender não é uma experiência de laboratório que se pode replicar, mas é única e se diferencia em cada situação pedagógica. Cada sala de aula é única, com diferentes alunos e situações específicas. A docência é uma atividade social e é direcionada de forma dialética, pelo e para os valores culturais de determinada sociedade em determinado contexto. No entanto, o que se processa na relação professor- aluno-conhecimento ultrapassa os limites do espaço da sala de aula e do tempo histórico em que ocorre a relação. É uma relação de reciprocidade onde professor e aluno se formam e se transformam.
 
A relação do professor com o aluno é, na perspectiva heideggeriana, o que deve ser a ênfase da educação. Utilizando-se de uma alegoria descrita no livro O Ser e o Tempo, Heidegger (2006) associa a ação de educar à ação de “cuidar”. Heidegger descreveu por meio de uma alegoria mítica, que a educação, como a ação de cuidar, é algo que se desenvolve por toda a vida do indivíduo. A alegoria conta que o céu, a terra e o cuidado concorreram para dar origem ao homem. O cuidado ao tomar uma porção de terra nas mãos pediu ao céu que lhe insuflasse o espírito de vida para que este deixasse de ser inerte e se transformasse em ser vivente. Ao dar vida à porção de terra transformando-a em ser, o céu se sentiu criador da criatura, o que foi contestado pelo cuidado. Chamaram então uma outra entidade mítica, o tempo, para pôr fim à disputa. O tempo entendeu que a criatura deveria se chamar “homem”, pois provinha do húmus (terra) e que sua alma, dada pelo céu, deveria voltar para lá quando morresse, mas durante toda a vida deveria depender, permanentemente, do cuidado (educação). Podemos tomar emprestado esse conto mitológico de Heidegger para entender o valor e a importância da educação como processo contínuo de formação do homem.
 
Em pesquisa desenvolvida por Feltram (2003) sobre as lembranças que diferentes profissionais tinham sobre um bom professor do tempo da universidade, a autora buscou conhecer especialmente os aspectos reconhecidos por estes como os mais estimuladores para o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Feltran (2003) concluiu que as características mais marcantes para os alunos não estavam apenas no trato do conteúdo (inegavelmente importante), mas na condição de ter levado o aluno à autonomia como pessoa e como profissional.
 
Para a grande maioria dos docentes, a formação técnica do aluno é o que importa, é o objetivo da relação ensino-aprendizagem.  A preocupação com a formação técnica leva, de forma consciente ou não, à exclusão dos valores éticos e estéticos, a privilegiar os benefícios econômicos e pouco dimensionar a necessidade de pensar as consequências sociais dos atos profissionais. A forma como as universidades se organizam e a forma como os professores desenvolvem as aulas e os conteúdos estão totalmente vinculadas à emergência da educação superior no período industrial. Nesse período as empresas começaram a demandar profissionais habilitados e capacitados para as suas necessidades, as quais passaram a ser tomadas como as necessidades da sociedade e confundidas com as necessidades de desenvolvimento das nações. Essa forma de ensino, que privilegiava a formação técnica, pragmática e utilitarista, fez com que se perdesse a preocupação com a formação do indivíduo. Ainda hoje os professores têm para si que formar bem os estudantes é dar-lhes condições de responderem ao mercado de trabalho, sem se questionarem que mercado é esse.
 
A falta de preocupação com uma formação docente para a educação superior é indicativo de como a questão da formação do homem, nesse nível educacional, é pouco evidenciada. As instituições, de forma geral, permitem que seus professores aprendam a ministrar aulas por ensaio e erro, desconsiderando a responsabilidade de formação do aluno que a relação docente envolve.
 
Essa forma de atuar na formação do estudante nos vem do entendimento utilitarista sobre o ensino superior e da organização dos cursos por meio de disciplinas técnicas, pragmáticas que tenham utilidade no mercado de trabalho. É fato que os grandes progressos proporcionados pela racionalidade científica dão respaldo a essa forma de ensinar, mas ela toma o estudante como sendo uma “peça” necessária para a engrenagem da maquinaria social e não como um indivíduo. É uma formação eficiente para o mercado, mas ineficiente para o ser humano, para a sociedade mais ampla e para a humanidade.
 
Morin (2007) critica esse modelo de formação afirmando que ele proporciona uma capacidade mecanicista, disjuntiva e reducionista. Para ele, é uma capacidade normalmente cega, que destrói as possibilidades de compreensão, reflexão e a capacidade de julgamentos éticos, complexos e contextuais, tornando-os profissionais inconscientes da responsabilidade social e sem autonomia.
 
Um comportamento docente que é determinante para os tempos atuais é o de assumir que ensinar é inserir o aluno na condição de criar e produzir seu conhecimento. O pensamento tradicional de transferência de conhecimento do professor para o aluno não tem mais lugar em quaisquer dos níveis de educação. Ao produzir seu conhecimento, o aluno adquire autonomia intelectual, pois o processo de aprender é composto por condições internas e externas, particulares do aluno, nas quais a qualidade da relação professor-aluno tem grande influência e se faz nos espaços da contradição entre os determinantes e as possibilidades. É acreditando que esse espaço é possível que se pode dizer da construção do pensamento autônomo do aluno. Agir e oportunizar reflexões profundas sobre a direção que o conhecimento toma ao ser construído e ao ser utilizado é uma das tarefas mais importantes da docência nos tempos atuais.
 
Considerações finais
 
Os processos de ensino-aprendizagem que defendemos para a atual sociedade não podem ser regidos por fórmulas técnicas e pensados por outros que não o próprio professor. Não há receitas prontas para serem implementadas, mas princípios fundamentais trabalhados em intencionalidades objetivadas no plano de curso do professor, nas suas ações em sala de aula e em outras atividades do currículo, para a formação do homem antes que para a estreita formação profissional.
 
É no exercício de uma atividade docente para autonomia que o professor pode substituir práticas até então impermeáveis às mudanças, por prática docente enquanto dimensão sociocultural da formação do homem no estudante universitário.
 
O preparo docente do professor tem núcleo central na postura ética e de respeito ao estudante como ser em formação, pois o processo de ensino e aprendizagem reconhece a relação de formação mútua (professor e aluno), uma relação especificamente humana de se reconstruir e, assim, pode-se falar que o ensino e a aprendizagem é uma atividade que se estrutura com muitas dimensões. Os aspectos que precisam ser cuidados não são só os aspectos intelectuais, mas os emocionais, os éticos, os políticos e os culturais.
 
Buscando explicitar a dimensão pedagógica na formação docente, abordamos os aspectos demandados por uma prática educativa significativa tanto para a sala de aula, como para além dela e se adverte para uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização. Ensinar é desenvolver o raciocínio, a capacidade de reflexão, o espírito crítico e investigativo sobre o conhecimento, sobre o mundo contemporâneo, sobre a sociedade e sobre as atividades que se desempenha nela e no mundo.
 
Será uma ação para além da sala de aula tudo o que o professor puder plantar e o aluno puder florescer para a sua vida profissional e pessoal visando uma melhor e mais justa sociedade.
 
Referências
 
DEWEY, J.  Vida e Educação. São Paulo: Abril Cultural. Col. Os Pensadores. 2.ed. 1980.
 
DOTTA, L. T. Representações Sociais do Ser Professor. Campinas: Alínea, 2006.
 
FELTRAN, R, e MALUSÁ, S. A sabedoria no melhor professor universitário. In: FELTRAN, R e MALUSÁ, Silvana. A prática da Docência Universitária. São Paulo: Pioneira, 2003.
 
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia:Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra. Coleção Saberes. 1996, 36ª Edição.
 
FREIRE, Paulo: Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.
 
GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.
 
HEIDEGGER, M. O Ser e o Tempo. Petrópolis: Ed. Vozes. 2006.
 
HUMBOLDT, W. Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições Científicas Superiore em Berlim. In: CASPER, G. Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro, EdUERJ. 1997.
 
KANT, E. O Conflito das Faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993.
 
MILL, J. Stuart - Ensaio sobre a Liberdade. Lisboa: Arcádia, 1964.
 
MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007.
 
NEWMAN, J.H. A Ideia de uma universidade. In TURNER, F. M. (org.) Newman e a ideia de uma universidade. Bauru; EDUSC, 2001.
 
SCHÖN, D. A. Formar Professores como Profissionais Reflexivos. In: NÓVOA, A. (Org.) Os Professores e a Sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.


[1] Epistemológico - do grego episteme, ciência e logos, estudo de.
[2] Ontológico - do grego ontos "ente" e logoi, "ciência do ser".
[3] Em alemão Humboldt-Universität zu Berlin.
[4] O termo autonomia é composto por “auto” que significa de si mesmo e “nomia” que significa lei.

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