Roberto Z. Esteves
O PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO
Aluno
Quem conhece os doze trabalhos de Hércules deve lembrar o quanto penou nosso herói para matar a Hidra de Lerna, uma monstruosa serpente de sete cabeças, todas elas dotadas de presas venenosíssimas. Parecia uma tarefa impossível, pois para cada cabeça cortada brotavam outras duas, novinhas em folha – e estariam se multiplicando até hoje, infinitamente, se Hércules não tivesse a ideia de cauterizar os pescoços decepados com a chama de uma tocha (para mais detalhes, sugiro uma volta aos Os Doze Trabalhos de Hércules, na versão genial de Monteiro Lobato). É a esta mesmíssima Hidra, aliás, que estamos nos referindo quando chamamos uma tarefa difícil de “bicho-de-sete-cabeças”.
Sempre  me lembro dela e de suas cabeças renováveis quando vejo renascerem  velhos mitos linguísticos que há muito foram sepultados. Confesso que  alguns deles são realmente duros de matar! Apesar de transpassados pela  espada da razão e pela lança da ciência, não é que volta e meia eles  reaparecem para assombrar os cristãos? Pois um leitor de Santa Maria  acaba de enviar um apelo para que eu o ajude a enterrar – se possível,  de forma definitiva – aquela já tão desacreditada versão de que a  palavra aluno carregaria consigo um sentido pejorativo. Mas de novo?  Depois de tudo o que se escreveu sobre isso, alguém ainda insiste em  defender uma tão rematada tolice? Acho que posso imaginar o desânimo de  Hércules, ao ver as hediondas cabeças renascerem..
A palavra  aluno vem do Latim alumnus (até aí morreu Neves), da família do verbo  alere (“criar, alimentar”). Designa a criança que ainda precisa ser  nutrida e cuidada – inicialmente no sentido do alimento físico, passando  mais tarde ao sentido do alimento do espírito. Circula por aí –  principalmente nos meios pedagógicos, o que é, no mínimo, curioso – a  interpretação macarrônica de que a palavra viria, na verdade, da junção  do prefixo privativo a- (“que não tem”) com o substantivo lumen (“luz”;  corresponde ao nosso lume). Isso a tornaria uma palavra politicamente  incorreta, ao sugerir que o estudante seria alguém que vive na treva, à  espera da iluminação do professor – o que, dizem algumas vozes  modernosas, descreve uma relação desigual, de cima para baixo, quando,  na verdade, o professor e o estudante deveriam idealmente manter uma  relação de colaboração, funcionando à semelhança dos dois pauzinhos que,  atritados um contra o outro, acabam produzindo fogo.
Como na Idade da  Pedra.Parece que voltamos aos tempos de Isidoro de Sevilha,  dicionarista da Idade Média, que era mestre em torcer o bracinho da  etimologia até que ela confessasse o que ele desejava ouvir. Como  teólogo (depois santificado), via na “origem” das palavras a evidência  das Escrituras; por exemplo, para ele, a morte (em Latim, mors) vem de  morsus (“mordida”), pois o homem só passou a ser mortal depois da  primeira mordida que o pai Adão deu na maçã... No caso de aluno, nota-se  o mesmo desrespeito à realidade linguística para fins ideológicos. Não  vou discutir aqui a concepção pedagógica que está por trás dessa  interpretação forçada, com a qual não concordo, mas vou me ater  exclusivamente à etimologia do termo. Já falamos nisso aqui nesta  coluna: o prefixo privativo a- é do Grego (acéfalo, analfabeto etc),  enquanto lumen é do Latim. É verdade que palavras modernas – amoral,  televisão – podem ser formadas pela união de elementos de línguas  diferentes, mas este não é o caso; em alumnus, vocábulo latino muito  antigo, não existe prefixo algum, muito menos grego. 
Para tentar  pôr um fim a essa lengalenga, recomendo a leitura urgente de um  valiosíssimo livrinho que todo pedagogo deveria incluir entre suas obras  de referência: trata-se de um “dicionário etimológico para ensinar e  aprender”, intitulado Oculto nas Palavras, de Luis Castello e Claudia  Mársico, professores de Letras Clássicas da Universidade de Buenos Aires  (traduzido aqui pela Editora Autêntica, de Belo Horizonte, em 2007).  Ali encontrarão, bem explicada e fundamentada, a etimologia de uma  centena e meia de palavras pertinentes ao ensino e à educação (como  educar, orientar, adolescente, discípulo, tutor, mestre etc). Tenho  certeza de que os verbetes, que são muito completos e muito bem  escritos, serão de grande utilidade para os estudiosos e pesquisadores  da área, principalmente por colocarem uma pedra sobre o tão pernicioso  “achismo” de nosso mundo acadêmico. A respeito de aluno, por exemplo, os  autores começam dizendo, com serenidade e firmeza: “O termo foi,  curiosamente, objeto de uma explicação etimológica disparatada (...).  Aluno seria ‘o que não possui luz’, ‘o que está no escuro’, e que,  portanto, busca ‘iluminar-se’ mediante o estudo. Essa explicação,  decerto, não resiste à menor analise histórica ou linguística”. E por aí  eles vão. (Continua)
Um comentário:
Excelente explanação Roberto. São esses pequenos detalhes que precisam ser esclarecidos para que a ignorância seja paulatinamente substituída pelo conhecimento e pela verdade.
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