terça-feira, 23 de novembro de 2010

Atenção Primária à Saúde

Rede de Pesquisa em Atenção Primária à saúde

Entrevista com Eugênio Vilaça Mendes -   23/11/2010
É consultor em Saúde Pública, tendo prestado serviços a vários organismos internacionais e nacionais. É especialista em planejamento de saúde, mestre em administração e doutor em odontologia. Foi Professor das Faculdades de Odontologia e Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, da Faculdade de Odontologia da PUC Minas, da Faculdade de Medicina da UNIMONTES e das Escolas de Saúde Pública de Minas Gerais e do Ceará. É Professor Honoris Causa da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Foi Secretário Adjunto da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais no Governo Tancredo Neves e profissional nacional na área de Desenvolvimento de Sistemas e Serviços de Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde. Tem vários trabalhos publicados no Brasil e no exterior: 105 artigos em periódicos e monografias e 35 livros ou capítulos de livros. O último livro, recentemente lançado pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, denomina-se “As redes de atenção à saúde”.Realizou trabalhos de consultoria em saúde pública em 15 países, em 24 estados e em mais de 200 municípios brasileiros. 
1) Quais aspectos você considera positivos e negativos no Sistema Único de Saúde?O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política pública recente e em construção. Não obstante, tem resultados muito positivos. Antes dele, vigia um Tratado de Tordesilhas da saúde, que separava quem portava a carteirinha do Inamps (e tinha acesso a uma assistência curativa razoável) da grande maioria que era atendida por uma atenção primária seletiva e como indigente na atenção hospitalar. O SUS rompeu essa divisão iniqua e fez da saúde um direito de todos e um dever do Estado. A instituição da cidadania sanitária pelo SUS incorporou, imediatamente, mais de 50 milhões de brasileiros como portadores de direitos à saúde e fez desaparecer, definitivamente, a figura odiosa do indigente sanitário. Esse é o maior feito a celebrar. Com muitas dificuldades, o SUS constitui um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo e seus números são impressionantes, falam por si próprios. Por ano, são 11 milhões de internações hospitalares, 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais, mais de 600 milhões de consultas médicas, mais de 400 milhões de exames de laboratórios e 150 milhões de vacinas. Além disso, o SUS desenvolveu programas de qualidade que são reconhecidos internacionalmente, como o sistema nacional de imunizações e o programa de controle de HIV/aids, e implantou o maior programa mundial de transplantes em sistemas públicos de saúde. Ademais, contribuiu para a melhoria significativa dos níveis de saúde dos brasileiros. Há muito que celebrar, mas permanecem desafios a superar. Os principais são: a segmentação do sistema, com a convivência de um sistema público e de dois privados (sistema de saúde suplementar e sistema de pagamento direto do bolso das pessoas e das famílias); a fragmentação do sistema, que leva a um modelo em que os diferentes pontos de atenção à saúde não se comunicam sob a coordenação da APS, sendo reativo, descontínuo e focado no cuidado de condições e eventos agudos; por fim, o subfinanciamento do sistema. Em síntese, pode-se afirmar que o SUS não é um problema sem solução, mas uma solução com problemas.
2) E na Atenção Primária à Saúde brasileira?
Os macroproblemas do SUS repercutem na APS. Aqui também há muitas conquistas a celebrar e desafios a superar. A APS avançou muito no Brasil. Eu identifico sete ciclos na evolução dela. O primeiro foi desenvolvido na USP, pela prof.ª Paula Sousa, no início do século XX. O sétimo, iniciado em 1994 com a implantação do Programa Saúde da Família (PSF) e vigente até hoje, foi denominado ciclo da Atenção Básica à Saúde. Este produziu resultados significativos: cobertura de 98 milhões de brasileiros por meio das mais de 30 mil equipes do PSF que atuam em mais de cinco mil municípios; melhoria de estruturas, processos e resultados na APS do SUS com a expansão do PSF; e superioridade do PSF, evidenciada por meio de comparações feitas entre o modelo da APS tradicional e o Programa, em diferentes municípios brasileiros. Recentemente, tem sido levantada, em diferentes lugares e por diferentes atores sociais do SUS, hipótese da fragilidade do PSF como forma de organizar a APS. Parece haver um sentimento, mais ou menos difuso, de desencanto com o Programa Saúde da Família, seja porque é um modelo que não se aplica a todos os aspectos da realidade brasileira, seja porque é um modelo caro e pouco resolutivo. Esse sentimento expressa-se em diversas propostas de substituição ou de flexibilização do PSF. As evidências científicas não dão suporte às propostas de mudança do Programa que se fazem no SUS. Assim, essas propostas, que parecem contemporâneas, são na realidade volta ao passado e, certamente, aprofundará a crise do SUS, prejudicando a sua política mais consequente que é o PSF. Isso decorre, em grande parte, da percepção equivocada de que o Programa fracassou. Ele não foi um fracasso, mas um sucesso, dentro dos limites que lhe foram dados para se desenvolver. O que se esgotou foi o ciclo da Atenção Básica à Saúde e, por isso, é necessário inaugurar o oitavo, que denomino ciclo da Atenção Primária à Saúde e que se caracterizará por uma radicalização do PSF.
3) Como foi sua experiência como secretário-adjunto de saúde em Minas Gerais, onde a APS foi priorizada na organização das ações de saúde?Eu fui secretário-adjunto no início dos anos 80 no Governo Tancredo Neves. Aquela ocasião correspondeu ao quinto ciclo da APS, caracterizado pela implantação das Ações Integradas de Saúde (AISs). Foi um momento importante, mas em período pré-SUS. Houve expansão significativa da APS, especialmente em municípios médios e grandes. Mas era uma Atenção Primária à Saúde que procurava colocar juntos dois modelos de certa forma incompatíveis: a APS seletiva da Secretaria de Estado de Saúde e o modelo de atenção médica individual do Inamps. Visto por uma perspectiva histórica, foi muito importante. Contudo, creio que a maior contribuição que a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais deu ao desenvolvimento da APS foi, a partir de 2003 até agora, com o Saúde em Casa. É um programa estruturador do governo de Minas que posiciona estrategicamente a Secretaria Estadual como a coordenadora do movimento de melhoria da APS no Estado, trabalhando em estreita relação com os municípios. Ele envolve muitas ações fundamentais: o incentivo mensal articulado com um contrato de gestão por resultados; o financiamento de construção ou reforma de mais de 1.600 unidades de APS; o módulo de transporte das equipes de Saúde da Família do Sistema Estadual de Transporte em Saúde; o programa de teleassistência, que atinge 1.500 equipes do PSF em 600 municípios; a introdução da gestão da clínica na APS, a partir de diretrizes clínicas baseadas em evidências; o programa de educação permanente dos médicos de família em parceria com nove faculdades de medicina e que atinge 3.200 médicos; o Canal Minas Saúde, maior TV corporativa do Estado, que chega regularmente a todas as 4 mil unidades de APS com programas educacionais; e o Plano Diretor da APS, projeto educacional de 10 oficinas presenciais com períodos de dispersão que alcançou todas as unidades de APS do Estado e seus 40 mil servidores.
4) O que você vislumbra para a política nacional de APS com a nova presidência?A discussão sobre a saúde, na última campanha presidencial, foi muito pobre. Nenhum dos candidatos debateu, com profundidade, os problemas da saúde. A APS não esteve presente, significativamente, nas discussões eleitorais. Isso é um sintoma da baixa valorização política e social da APS, um fenômeno universal, mas com forte presença nacional. Por isso, não sei exatamente qual será a política de saúde concreta. Se vai ser focada em unidades de pronto-atendimento e no acesso a centros de especialidades, como deram a entender os debates de campanha, ou se a APS será colocada no centro das políticas do SUS. Uma indicação da prioridade que deveria ser dada à APS seria a criação de uma Secretaria Nacional de Atenção Primária à Saúde no Ministério da Saúde e o incremento do orçamento dessa Secretaria. O fato é que o sistema fragmentado vigente se esgotou há muito tempo e deve ser substituído pela implantação de redes de atenção à saúde, coordenadas pela APS. Esse movimento, que se fortalece internacionalmente, deveria prevalecer, também, em nosso país. Espero que a Presidente Dilma Roussef e o Ministro da Saúde sejam sensíveis ao imprescindível fortalecimento da APS nas redes de atenção à saúde.
5) Na apresentação no V Seminário Internacional de APS, você fala sobre o novo ciclo da atenção primária. Poderia falar mais a respeito?A leitura equivocada do fracasso do PSF merece ser mais bem interpretada. Ela decorre da permanência de problemas que não foram superados na estruturação dessa política de APS. A persistência desses problemas fez com que, de certa forma, eles se radicassem ao longo desta década e meia de existência do Programa e levou ao esgotamento do ciclo da Atenção Básica à Saúde. Portanto, o PSF não fracassou, mas este ciclo, no qual ele nasceu e cresceu, esgotou-se. A saída não está em retroceder, mas em avançar, diagnosticando os problemas existentes para superá-los. Os problemas não superados impedem que a APS seja, de fato, uma estratégia de reordenamento do SUS. Os principais são: a questão ideológica, a prevalência de uma visão de APS seletiva e/ou de nível de atenção; a fragilidade institucional; a carência de infraestrutura adequada; a baixa densidade tecnológica; a baixa profissionalização da gestão; a ausência de equipes multiprofissionais; os problemas educacionais na graduação e na pós-graduação; a precarização nas relações de trabalho; a fragilidade do modelo de atenção para dar conta de uma situação de tripla carga de doenças, com forte prevalência de condições crônicas; e o subfinanciamento da APS. O ciclo da Atenção Básica à Saúde esgotou-se pela persistência desses problemas enunciados e não superados, mas não pelo fracasso do modelo do PSF. Por consequência, há que se instituir um oitavo ciclo de desenvolvimento da APS no SUS que, para ser coerente com a experiência internacional, deveria nomear-se ciclo da Atenção Primária à Saúde. Ele se caracterizará pela radicalização do modelo do Programa Saúde da Família, uma saída para a frente, e não por sua substituição ou flexibilização, uma alternativa reacionária e voltada ao passado. Radicalizar o PSF significa aceitá-lo, verdadeiramente, além do discurso oficial, a partir das evidências produzidas internacionalmente e no Brasil, como a política de APS no SUS. Além disso, implicará a instituição de uma nova agenda para o Programa, centrada na superação dos problemas que levaram ao esgotamento do sétimo ciclo. O novo ciclo significará o encontro do PSF brasileiro com as novas diretrizes da APS, enunciadas pela Organização Mundial da Saúde no relatório mundial de 2008. “Agora mais do que nunca” é preciso radicalizar o PSF no SUS.
6) Quais as principais mudanças da APS ocorridas atualmente?
As principais modificações da APS, atualmente, estão na sua consideração como estratégia de reordenamento dos sistemas de atenção à saúde, superando as visões ideológicas da atenção primária seletiva ou de nível de atenção e colocando-a como o centro de comunicação das redes de atenção à saúde. Essa nova APS terá de exercitar-se de acordo com os atributos de primeiro contato, coordenação, longitudinalidade, integralidade, orientações familiar, comunitária e cultural e deverá cumprir as três funções essenciais de resolubilidade, centro de comunicação das redes de atenção à saúde e responsabilização pela saúde das populações adscritas. Felizmente, há muitas evidências de que esse é o caminho do qual o SUS não poderá fugir.
7) Para finalizar a entrevista, gostaríamos que deixasse a todos os participantes da rede uma dica, ideia que acredita que seja o principal diferencial de quem veste a camisa da APS.
Há um enorme fosso entre as evidências produzidas por pesquisas em sistemas de atenção à saúde sobre a APS e sua valorização política e social. Há muitas razões para explicar isso, sejam de ordem ideológica, advindas do modelo da medicina flexneriana, sejam de ordem econômica, pelo baixo valor agregado pelos procedimentos de menor densidade tecnológica, utilizados na Atenção Primária à Saúde. Contudo, a crise contemporânea dos sistemas de atenção à saúde empurra-os para uma nova concepção de sistemas integrados em redes, sob a coordenação da APS. As evidências produzidas mundo afora são inequívocas de que não há saída para essa crise sem o fortalecimento da APS. Esse é o caminho a ser trilhado nesta releitura após 30 anos de Alma-Ata. A nova concepção retira os que trabalham na APS de um isolamento nas unidades e os coloca como centros de inteligência de uma rede de atenção à saúde. A luta não será nem fácil, nem breve, mas valerá a pena para os que acreditam que esta revolução no campo sanitário é possível e necessária.

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