Prevenindo
o sobrediagnóstico: como parar de prejudicar pessoas saudáveis
Ray
Moynihan; Jenny Doust & David Henry
Acumulam-se evidências de que a medicina está
prejudicando pessoas saudáveis através da detecção cada vez mais precoce e da
definição cada vez mais ampla de doença. Com o anúncio de uma conferência
internacional para melhorar a compreensão do problema do sobrediagnóstico, Ray
Moynihan, Jenny Doust e David Henry examinam suas causas e exploram as soluções
A tão elogiada capacidade da medicina de ajudar
os doentes está sendo rapidamente desafiada por sua propensão em prejudicar os
saudáveis. Uma literatura científica em expansão está fomentando a preocupação
pública de que muitas pessoas estejam sendo sobredosadas 1
sobretratadas 2 e sobrediagnosticadas.3 Programas de
rastreamento têm detectado casos de câncer em estágio inicial que jamais
causariam sintomas ou morte;4 tecnologias de diagnóstico sensíveis
identificam “anormalidades” tão minúsculas que continuariam benignas;5
ampliação das definições de doença significa que pessoas em riscos ainda muito
pequenos recebem rótulos médicos permanentes e tratamentos vitalícios que não
beneficiariam muitas delas.3,6 Com estimativas de que mais de US$200
bilhões sejam desperdiçados em tratamentos desnecessários por ano nos Estados
Unidos,7 o ônus cumulativo do sobrediagnóstico representa uma ameaça
significativa à saúde humana.
Definido estritamente, o sobrediagnóstico ocorre
quando pessoas sem sintomas são diagnosticadas com uma doença que, em última
instância, não faria com que apresentassem sintomas ou morressem precocemente.3
Definido mais amplamente, ele se refere a problemas relacionados a excesso de
medicalização e sobretratamento subsequente, perigo do diagnóstico, mudança de
limiares e alarmismo da doença – todos processos que ajudam a reclassificar
pessoas saudáveis com problemas pequenos ou em baixo risco como doentes.8
O aspecto negativo do sobrediagnóstico inclui os
efeitos negativos da rotulagem desnecessária, os danos decorrentes de exames e
terapias desnecessários e o custo oportunista de recursos desperdiçados que
poderiam ser mais bem-empregados para tratar ou prevenir doenças reais. O
desafio é articular a natureza e a extensão do problema de maneira mais ampla,
identificar padrões ou motivadores e desenvolver um pacote de respostas que
sejam desde clínicas até culturais.
No nível clínico, um objetivo primordial é
discriminar melhor “anormalidades” benignas daquelas que prosseguirão e
causarão danos. Em termos de orientação e conscientização do público e dos
profissionais, são necessárias informações mais honestas sobre o risco de
sobrediagnóstico, particularmente com relação ao rastreamento. Mais profundamente,
as evidências cumulativas de que estamos prejudicando pessoas saudáveis podem
forçar o questionamento de nossa crença na detecção cada vez mais precoce, uma
renovação do processo de definição de doença e uma mudança fundamental nos
incentivos sistêmicos que levam a excessos perigosos.
No próximo ano, uma conferência científica
internacional chamada Preventing Overdiagnosis terá como objetivo aprofundar a
compreensão e a conscientização do problema e sua prevenção. A conferência
acontecerá em 10-12 de setembro de 2013 nos Estados Unidos, organizada pelo
Dartmouth Institute for Health Policy and Clinical Practice em parceria com o
BMJ, a organização americana líder de consumidores Consumer Reports e a Bond
University. A conferência é oportuna, já que a crescente preocupação com o
sobrediagnóstico está abrindo caminho para uma ação coordenada. A seção “Less
is More” do Archives of Internal Medicine regularmente questiona a base de
evidências;9 os grupos de política de saúde de alto nível na Europa
estão discutindo maneiras de lidar com o excesso;10 e a campanha
recentemente lançada Choosing Wisely (Escolhendo com Sabedoria) adverte sobre a
quantidade de exames e tratamentos potencialmente desnecessários em nove
especialidades.11
Vários fatores – incluindo a melhor das intenções
– estão motivando o sobrediagnóstico, porém os avanços tecnológicos são um
importante contribuinte. A literatura sugere várias e amplas vias relacionadas
ao sobrediagnóstico: o sobrediagnóstico detectado no rastreamento de pessoas
sem sintomas; o sobrediagnóstico resultante do uso de exames cada vez mais
sensíveis em pessoas com sintomas; o sobrediagnóstico acidental
(“acidentalomas”) e o sobrediagnóstico resultante de definições excessivamente
ampliadas de doença. Essas diferentes vias não são mutuamente exclusivas, e uma
classificação mais rigorosa das diversas formas de sobrediagnóstico será foco
de discussão na conferência científica de 2013.
Sobrediagnóstico detectado em rastreamento
Essa via de sobrediagnóstico ocorre quando um
programa de rastreamento detecta doença em uma pessoa sem sintomas, porém a
doença está em um estágio que jamais causaria sintomas ou morte precoce. Às
vezes, isso é chamado de pseudodoença. Ao contrário das noções populares de que
os tipos de câncer são universalmente nocivos e fatais, alguns podem regredir,
deixar de progredir ou progredir tão lentamente que não causarão danos antes
que o indivíduo morra por outras causas.5 Conforme discutiremos a
seguir, há fortes evidências de ensaios clínicos randomizados e outros estudos
que comparam populações rastreadas e não rastreadas de que uma importante
proporção dos casos de câncer detectados através de alguns programas populares
de rastreamento podem ser pseudodoenças. 4,12
Evidências de estudos de autópsias sugerem um
grande reservatório de doença subclínica na população em geral, incluindo
câncer de próstata, tireóide e mama, cuja maior parte nunca causou danos. 12
De maneira similar, rastrear o coração de pessoas sem sintomas ou em baixo risco
também pode levar ao sobrediagnóstico de aterosclerose coronária e a subsequentes
intervenções desnecessárias.13 Nosso entendimento seja da natureza e
da extensão do sobrediagnóstico, seja da quantidade de pseudodoença detectada
pelo rastreamento continua limitado, mas está evoluindo e, como observaram
recentemente Woolfe e Harris no JAMA , “a preocupação com o sobrediagnóstico é
justificada”.14
Exames cada vez mais sensíveis
As pessoas que se apresentam aos médicos com
sintomas também podem ser sobrediagnosticadas, já que as mudanças nas
tecnologias ou nos métodos de diagnóstico permitiram a identificação de formas
menos graves de doenças ou distúrbios. Torna-se cada vez mais claro que uma
proporção substancial dessas “anormalidades” iniciais nunca progredirá, o que
levanta questões inusitadas sobre exatamente quando se deve usar os rótulos
diagnósticos e abordagens terapêuticas tradicionalmente empregados contra
formas muito mais graves de doença.
Acidentalomas
Exames de imagens diagnósticas do abdome, da
pelve, do tórax, da cabeça e do pescoço podem revelar “achados acidentais” em
até 40% dos indivíduos que estão sendo examinados por outros motivos.15
Alguns deles são tumores, e a maior parte desses “acidentalomas” é benigna. Um
número muito pequeno de pessoas se beneficiaria da detecção precoce de um tumor
maligno acidental, enquanto outras sofreriam de ansiedade e efeitos adversos de
outros exames e tratamentos de uma “anormalidade” que jamais as teria
prejudicado. Como outros pesquisadores têm demonstrado, a rápida ascensão da
incidência de alguns tipos de câncer, comparada a taxas de mortes relativamente
estáveis, é um fenômeno que sugere sobrediagnóstico disseminado, seja por
rastreamento, seja pela detecção de acidentalomas. 12
Definições excessivamente ampliadas
Outra via para o sobrediagnóstico é através da
ampliação das fronteiras da doença e da redução dos limiares de tratamento a um
ponto em que um rótulo médico e a terapia subsequente podem causar mais danos
do que fazer bem às pessoas. A mudança dos critérios diagnósticos de várias
condições está aumentando o número de pessoas definidas como doentes,16
fazendo com que virtualmente toda a população de idosos seja classificada como
portadora de ao menos uma condição crônica.17 Essa ampliação
aconteceu tanto no caso de condições assintomáticas que representam risco de um
evento adverso, como a osteoporose, em que os tratamentos causam mais danos do
que benefícios àqueles com risco muito baixo de fratura,18 quanto no
caso de condições comportamentais, como a disfunção sexual feminina, em que
dificuldades comuns foram reclassificadas como disfunções.19
Essas mudanças nos critérios diagnósticos são
comumente feitas por grupos de profissionais da saúde que mantêm vínculos
financeiros com companhias que se beneficiam diretamente de qualquer expansão
do grupo de pacientes.20 Conforme as definições ampliam-se e os
limiares caem, as pessoas com riscos menores ou problemas menos graves são
rotuladas, o que significa que os potenciais benefícios do tratamento declinam,
levantando-se a possibilidade de que os danos superem os benefícios. Segundo
Welch e colaboradores estimaram em seu livro Overdiagnosed,3 de 2011, muitas
pessoas diagnosticadas e tratadas por um longo período para concentrações de
colesterol próximas do normal ou osteoporose próxima do normal podem estar
sendo “sobrediagnosticadas”, no sentido de que nunca teriam apresentado os
eventos que seus tratamentos pretendem prevenir.
Uma modalidade relacionada de sobrediagnóstico
ocorre quando as pessoas são diagnosticadas fora dos critérios já ampliados de
diagnóstico, como ocorre quando as normas inapropriadas do fabricante exageram
a incidência de uma anormalidade,21 quando os métodos de diagnóstico
erroneamente rotulam flutuações randômicas ou normais em biomarcadores como
anormalidades reais22 ou quando qualificadores importantes são
deixados de fora do processo diagnóstico.23
Asma – um estudo canadense sugere que 30% das pessoas com o diagnóstico podem não sofrer de asma, enquanto 66% delas podem não precisar de medicação. 37
Transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade – as definições ampliadas
levaram a preocupações com o
sobrediagnóstico; meninos nascidos no final do
ano escolar apresentam uma chance 30% maior
de receber o diagnóstico e chance 40% maior de serem medicados do
que aqueles nascidos no começo do ano. 46
Câncer
de mama – uma revisão
sistemática sugere que até um terço dos casos de câncer detectados no
rastreamento podem ser sobrediagnosticados.4
Doença
renal crônica –
a definição controversa classifica uma em cada dez pessoas como portadora
da doença; há preocupações com o sobrediagnóstico de muitos idosos. 23
Diabete gestacional – a definição expandida classifica quase uma em
cada cinco gestantes. 31
Hipertensão arterial – uma revisão sistemática sugere a possibilidade de
sobrediagnóstico substancial.22
Colesterol alto – estima-se que até 80% das pessoas com colesterol quase
normal tratadas a vida toda podem ser sobrediagnosticadas.3
Câncer
de pulmão – cerca
de 25% ou mais dos casos de câncer de pulmão detectados no
rastreamento podem ser sobrediagnosticados.56
Osteoporose – as definições expandidas podem significar que
muitas mulheres de baixo risco sofrem danos.18
Câncer
de próstata – o
risco de um câncer detectado pelo PSA ser sobrediagnosticado pode ser
superior a 60%.12
Embolia pulmonar – o aumento na sensibilidade do diagnóstico leva à
detecção de pequenos êmbolos, porém muitos
deles não exigem tratamento com anticoagulante.39
Câncer de
tiróide – grande parte do
aumento observado na incidência pode ser devido
ao sobrediagnóstico.28
Exemplos de sobrediagnóstico
As crescentes evidências relativas ao
sobrediagnóstico sugerem que o problema pode existir em extensões variadas e em
diversas condições, incluindo aquelas para as quais o subdiagnóstico pode,
simultaneamente, estar ocorrendo. Para algumas condições, as evidências
continuam provisórias e especulativas; para outras, tornaram-se muito mais
robustas.
Câncer de mama
Certamente, as evidências mais fortes do
sobrediagnóstico provêm de estudos de câncer de mama detectado no rastreamento,
embora as estimativas de sua extensão tenham grande variação. Uma revisão
sistemática de 2007 no Lancet Oncology concluiu que a proporção de
sobrediagnóstico de câncer de mama invasivo entre mulheres na casa dos 50 anos
variava entre 1,7% e 54%.24 Um estudo australiano estimou que a taxa
fosse de pelo menos 30%,25 enquanto um estudo norueguês calculou
15-25%.26 Uma revisão sistemática de 2009 no BMJ concluiu que até um
terço de todos os casos de câncer detectados no rastreamento podem ser
sobrediagnosticados.4 Entretanto, mesmo com fortes evidências de
estudos de base populacional, atualmente é impossível discriminar entre os
tipos de câncer que causariam dano e aqueles que não causariam.
Câncer de
tireóide
Embora as chances de exames detectarem uma
“anormalidade” na tireoide sejam altas, o risco de algum dia causar danos é
pequeno.3,27 A análise da crescente incidência mostra que muitos dos
casos de câncer de tireoide recentemente diagnosticados são as formas menores e
menos agressivas que não exigem tratamento,28 que por si carreiam o
risco de lesões aos nervos e medicamentos de longo prazo.3
Diabete
gestacional
Uma revisão de 2010 dos critérios que definem o
diabete gestacional recomendou uma drástica redução do limiar de diagnóstico,
fazendo com que mais do que o dobro das gestantes fossem classificadas em quase
18%.29 Os proponentes argumentam que o rastreamento universal com a
nova definição reduzirá os problemas de saúde, incluindo os bebês “grandes para
a idade gestacional”.29 Os críticos, no entanto, reivindicam um
debate urgente antes que a nova definição expandida seja mais amplamente
adotada, já que receiam que muitas mulheres possam ser sobremedicadas e
sobrediagnosticadas. Além disso, o exame de rastreamento tem reprodutibilidade
ruim para casos moderados, e as evidências de benefícios para gestantes
recentemente diagnosticadas são fracas e os benefícios, na melhor das
hipóteses, são modestos.30,31
Doença
renal crônica
Mais de 10% dos adultos nos Estados Unidos são
classificados como portadores de alguma forma de doença renal crônica.32
Uma definição de trabalho lançada como parte de novas diretrizes clínicas33
afirma que uma taxa de filtração glomerular estimada (eGFR) inferior a 60
ml/min/1,73 m2 e inalterada por três meses ou mais é considerada
anormal, uma decisão que, segundo os críticos, automaticamente cria o potencial
de sobrediagnóstico, particularmente entre os idosos.34
De acordo com Winearls e Glassock, o novo sistema
de classificação é “como uma pesca de arrastão” e “captura muito mais inocentes
do que deveria”.23 Os autores estimam que até um terço das pessoas
com mais de 65 anos atendem aos novos critérios e, entre essas pessoas, menos
de uma em 1.000 desenvolverá doença renal terminal a cada ano. Também apontam
para problemas importantes quanto à confiabilidade e à consistência do exame de
eGFR, expressando preocupações de que muitos idosos estejam sendo rotulados com
base em uma única medida laboratorial potencialmente imprecisa. Em outra
ocasião, argumentaram que “a maioria daqueles considerados portadores de doença
renal crônica não apresenta doença renal identificável” e destacaram tentativas
de algumas organizações de se distanciar da nova e controversa definição, de
aumentar o limiar para diagnóstico e de reduzir drasticamente a prevalência.35
Respondendo às críticas, os proponentes defenderam a nova definição como sendo
“clara, simples e útil”.36
Asma
Embora a asma possa ser grave, porém
subdiagnosticada e subtratada, alguns estudos sugerem que também pode haver
sobrediagnóstico substancial. Um grande estudo em 2008 concluiu que quase 30%
das pessoas diagnosticadas como portadoras de asma não sofriam da condição, e
quase 66% delas não precisavam de medicamentos ou cuidados para a asma durante
seis meses de seguimento.37 Os autores concluíram: “Uma proporção
substancial de pessoas (...) pode ser sobrediagnosticada com asma e receber
medicamentos desnecessários”. No mesmo ano, um estudo holandês concluiu que, de
1.100 pacientes que utilizavam corticosteroides inalados, 30% poderiam estar
usando os medicamentos sem qualquer indicação clara.38
Embolia
pulmonar
Os médicos pensam na embolia pulmonar como um
diagnóstico que “não pode passar despercebido”, pois a falha em detectá-lo tem consequências
catastróficas. Historicamente, tal condição era diagnosticada apenas quando o
bloqueio era grande o suficiente para causar infarto de parte do pulmão ou
instabilidade hemodinâmica. Nesses pacientes, o tratamento com um
anticoagulante ou agente trombolítico era considerado obrigatório. Hoje, porém,
a angiotomografia pulmonar (angio-TC) é capaz de detectar coágulos menores, e
há incerteza quanto à necessidade de sempre tratar.39 Analisando
tendências antes e depois da introdução da angiotomografia pulmonar, Weiner e
colaboradores sugeriram que a quase duplicação da incidência “reflete uma
epidemia de exames diagnósticos que criou o sobrediagnóstico”, com grande parte
do aumento composto de casos “clinicamente sem importância”, que “não teriam sido
fatais mesmo que não diagnosticados e não tratados”.40 Um estudo
observacional está investigando a segurança de não tratar pessoas com êmbolos
muito pequenos.41
Motivadores
do sobrediagnóstico
•
Mudanças tecnológicas que detectam “anormalidades” cada vez menores.
•
Interesses comerciais e profissionais velados.
•
Grupos com conflitos de interesse que produzem definições expandidas
de doenças e redigem diretrizes.
•
Incentivos legais que punem o subdiagnóstico, mas não
o sobrediagnóstico.
•
Incentivos do sistema de saúde que favorecem mais exames
e tratamentos.
•
Crenças culturais de que mais é melhor; fé na detecção precoce
não modificada pelos seus riscos.
Transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade
Muito tem sido escrito sobre a expansão das
definições diagnósticas na doença mental e sobre as preocupações com os perigos
do sobretratamento.42 O debate foi intensificado com sugestões de
que os processos atuais para definição de doença possam estar contribuindo para
o sobrediagnóstico disseminado de condições como os transtornos bipolar,
autista e de déficit de atenção e hiperatividade.43,44 Um foco de
preocupação é o possível sobrediagnóstico de crianças, o qual não têm
influência na adequação de um rótulo que pode mudar suas vidas permanentemente.
Isso é particularmente saliente com o transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade.45 Um estudo recente de quase um milhão de crianças
canadenses concluiu que meninos nascidos em dezembro (tipicamente os mais
jovens do ano) apresentavam uma chance 30% maior de receber o diagnóstico e uma
chance 40% maior de receber medicamentos do que aqueles nascidos em janeiro. Os
autores concluíram que seus achados “levantam preocupações sobre os potenciais
danos do sobrediagnóstico e da sobreprescrição”.46
Motivadores
do sobrediagnóstico
As forças que motivam o sobrediagnóstico estão
profundamente incorporadas na cultura da medicina e da sociedade mais ampla,
destacando os desafios enfrentados por qualquer tentativa de combatê-las. Um
grande motivador é a própria mudança tecnológica. Black descreveu, em 1998, que
a capacidade de detectar anormalidades menores axiomaticamente tende a aumentar
a prevalência de qualquer doença.5 Por sua vez, isso leva à
supervalorização dos benefícios das terapias, pois formas mais leves de doença
são tratadas e as melhorias na saúde são erroneamente atribuídas ao sucesso do
tratamento, criando um circuito de “falso feedback” que alimenta um “ciclo de
aumento dos exames e tratamentos que pode, por fim, causar mais danos do que
benefícios”.5
As indústrias que se beneficiam dos mercados
expandidos de exames e tratamentos têm ampla influência na profissão médica e
na sociedade em geral, seja através de laços financeiros com grupos
profissionais e de pacientes, seja através do financiamento de propaganda
direta ao consumidor, fundações de pesquisa, campanhas para conscientização de
doenças e orientação médica.8 Ainda mais importante, os membros dos
grupos que redigem as definições de doenças ou os limiares para tratamento
costumam manter laços financeiros com companhias que só têm a ganhar com a
expansão dos mercados.20 De maneira similar, os profissionais da
saúde e suas associações podem ter interesse na maximização do grupo de
pacientes em sua especialidade; assim, os autoencaminhamentos por médicos a
tecnologias diagnósticas ou terapêuticas nas quais tenham interesse comercial
também podem motivar diagnósticos desnecessários.
Evitar ações judiciais e a psicologia do
arrependimento são outros motivadores óbvios, uma vez que os profissionais
podem ser punidos por não perceber os sinais iniciais de doenças, mas
geralmente não enfrentam sanções pelo sobrediagnóstico. Medidas de qualidade
focadas em fazer mais também podem estimular o sobrediagnóstico a fim de
atingir metas para incentivos financeiros.47
Uma crença intuitiva na detecção precoce,
alimentada pela profunda fé na tecnologia médica, certamente está no cerne do
problema do sobrediagnóstico. Cada vez mais consideramos o fato de simplesmente
estar “em risco” de doença futura como tendo a doença em si. Começando com o
tratamento da hipertensão arterial no meio do século 20,48
proporções crescentes da população saudável têm sido medicalizadas e medicadas
para um número também crescente de condições assintomáticas, com base apenas em
seu risco estimado de eventos futuros. Embora a abordagem tenha reduzido o
sofrimento e prolongado a vida de muitos indivíduos, para aqueles sobrediagnosticados
ela desnecessariamente transformou a experiência de vida em uma confusa teia de
condições crônicas. A norma cultural de que “mais é melhor” é confirmada por
evidências recentes sugestivas de que a satisfação do paciente flui do maior
acesso a exames e tratamentos, embora um maior volume de cuidado possa estar
associado a mais danos.49,50
O que podemos fazer?
Com base no conhecimento e na atividade
existentes, a conferência de 2013 oferecerá um fórum para mais aprendizado,
aumento da conscientização e desenvolvimento de maneiras para prevenir o
problema do sobrediagnóstico (www.preventingoverdiagnosis.net).
As pesquisas relativas a tal questão são agora reconhecidas como parte do
futuro direcionamento científico do setor de prevenção de câncer do Instituto
Nacional do Câncer nos Estados Unidos.51 A conferência de 2013
espera dar aos pesquisadores que trabalham nessa área a chance de compartilhar
e debater métodos, bem como avançar em suas agendas de pesquisas. Com respeito
à orientação, o desenvolvimento de uma variedade de currículos e pacotes de
informações ajudará a aumentar a conscientização quanto aos riscos do
sobrediagnóstico, particularmente associados ao rastreamento.52
Em associação com o BMJ, está sendo planejada uma
série de artigos sobre o potencial de sobrediagnóstico em condições
específicas. E, no nível da prática clínica, novos protocolos estão sendo
desenvolvidos para que se tenha mais cautela no tratamento de acidentalomas.3
Além disso, há solicitações para que consideremos aumentar os limiares que
definem o “anormal” – por exemplo, no rastreamento do câncer de mama – e
avaliemos os métodos de observação de alterações em algumas patologias
suspeitas com o tempo, em vez de intervirmos imediatamente.53
Conforme mencionamos, estudos em estágio inicial acerca de como não
diagnosticar ou interromper a prescrição com segurança estão começando a
surgir.
Em nível de políticas, a reforma do processo de
definição de doença é exigida com urgência, com um modelo originário dos
National Institutes of Health, nos Estados Unidos, em que as pessoas com
conflitos de interesse financeiros ou de reputação são desqualificadas da
participação em grupos.20 A avaliação isenta das evidências pode
resultar no estreitamento das definições de doença, como tem sido observado com
as recentes tentativas de propostas para aumentar limiares para hipertensão
arterial, o que poderia causar a “desmedicalização” de até 100 milhões de
pessoas.54 Os processos para definição de doença também se
beneficiarão da tentativa de sintetizar as evidências da medicina clínica com a
literatura sobre as mais amplas determinantes ambientais e sociais da saúde.
Outras reformas políticas deverão revisar a permanência de alguns rótulos
diagnósticos, abordar pedidos de maior independência no desenho e na condução
de estudos científicos55 e ajustar os incentivos estruturais e
legais que motivam o sobrediagnóstico.
A preocupação com o sobrediagnóstico não pode
impedir que muitas pessoas recebam cuidados de saúde bastante necessários. Ao
contrário, os recursos desperdiçados com o cuidado desnecessário serão mais
bem-aplicados tratando-se e prevenindo-se doenças reais. O desafio é decidir
qual é qual, além de produzir e disseminar evidências que nos ajudem a tomar
decisões mais informadas sobre quando um diagnóstico pode fazer mais bem do que
mal.
Ray Moynihan é fellow em pesquisa, Bond
University, Robina, Queensland, Austrália. raymoynihan@bond.edu.au
Jenny Doust é professor de
epidemiologia clínica, Centro de Pesquisas em Prática Baseada em
Evidências, Faculdade de Ciências de Saúde e Medicina, Bond
University, Austrália.
David Henry é
diretor-executivo, Instituto de Ciências Avaliativas Clínicas,
Toronto, Canadá.
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Um comentário:
Em um país como o Brasil em que há muitas realidades, é difícil dizer que somente o sobrediagnóstico ou o super diagnóstico seja o maior mal. Na realidade SUS interior, o mal é a falta de consultas e a dificuldade de acesso a profissionais habilitados e capacitados para fazer diagnóstico, por vezes básicos. No SUS capital, podemos dizer que acontece a supervalorização diagnóstica, em que se pese a quantidade de exames caros e de última geração, que no final apenas mostra o que já se havia visto em um simples exame físico. Na saúde suplementar também existem outras tantas realidades, como a dificuldade de acesso a médicos 'bons' que tem a agenda lotada e os problemas de excesso de solicitação de exames por profissionais que tem como meta apenas a guia de consulta. Podemos abrir aqui uma discussão ampla sobre a saúde e o atendimento médico no Brasil.
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