De Alma Ata à Estratégia Saúde da Família: 30 anos de APS no SUS – avanços, desafios e ameaças
Entre 20 e 21 de março, ocorreu o Seminário Preparatório para o Abrascão 2018 na Fiocruz, Rio de Janeiro. Com o título “De Alma Ata à Estratégia Saúde da Família: 30 anos de APS no SUS – avanços, desafios e ameaças”, o evento teve ampla participação e qualificou o debate sobre o futuro e os caminhos para a APS e o SUS no país.
Organizado pela rede de Pesquisa em APS da ABRASCO, o seminário teve como contribuir para a formulação de uma agenda política estratégica para a APS no SUS. Como seu produto final, será elaborado um documento síntese que comporá o “Caderno sobre o SUS, direitos e democracia”, organizado pela ABRASCO.
A mesa de abertura teve a participação de Ronald Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde; Rosana Aquino, professora da UFBA; Davide Rosella, professor convidado da UFBA e vinculado ao London School of Hygiene and Tropical Medicine e Luiz Facchini, professor da UFPEL e coordenador da Rede de Pesquisa em APS. O debate foi coordenado pela Profª Lígia Giovanella, da ENSP-Fiocruz e coordenadora da Rede de Pesquisas em APS.
Na abertura, Giovanella fez uma emocionante homenagem à Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada no mês de março. “Este ano comemoramos 30 anos do SUS criado pela constituição cidadã de 1988 que estabeleceu o direito universal à saúde em nosso país, e 40 anos da Declaração da Conferência internacional de cuidados primários de saúde realizada em 1978 em Alma Ata. Nesta data, e frente a uma onda conservadora que assola não somente o nosso país, vale a pena resgatar e atualizar os princípios fundamentais da APS: uma atenção essencial e base integrada a um sistema público de saúde de acesso universal com financiamento e prestação públicos, inseparável do desenvolvimento econômico e social para enfrentamento dos determinantes sociais e a promoção da saúde e que promova a participação social. Estes são também princípios constitutivos de nosso SUS que orientam nossas ações.”, afirmou a professora.
Durante o debate, foram expostos alguns dos porquês da APS apresentar mesmo tempo indicadores positivos, grandes fragilidades e disputas de interesses entre o setor público e privado no país.
Em sua apresentação, a professora Rosana Aquino expôs um conjunto de resultados positivos referentes aos 30 anos de experiências de APS no país. Dentre os efeitos positivos, destacou a queda em 13% da mortalidade infantil entre 1999 e 2004, enquanto o aumento de cobertura foi de 14 para 60% e a queda de internações por condições sensíveis à APS de 183,9 para 143,3 por 10 mil habitantes, entre 1999 e 2007. Trouxe à tona também evidências de interação dos efeitos da ESF e do Programa Bolsa Família na melhoria do estado de saúde da população do país.
Para Rosana, um marco da ESF e da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) até então foi reorientar o sistema público como fonte usual para cuidados de saúde da maioria da população. Rosana encerrou ainda apontando que o desafio da informatização, que poderia dar o devido salto de qualidade e acesso do SUS no país, esbarra na lentidão de implementação e na sua própria existência.
Por meio de modelagens matemáticas, Davide Rasella, professor convidado do ISC/UFBA e pesquisador associado do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/IGM/Fiocruz) apresentou dados preliminares do estudo que relaciona as políticas de austeridade do governo Temer com a mudança nos quadros de saúde. Para Rasella, fica evidente o distanciamento entre a projeção de crescimento do PIB e o investimentos sociais estrangulados pela EC95. “O que impressiona é a derivação da curva. É justamente quando os recursos da economia deveriam produzir melhoras para justamente sair da crise que se agravam os efeitos da austeridade”, afirmou o professor. Nas projeções do pesquisador, a manutenção do ajuste deixa de evitar cerca a morte de 20 mil crianças até 5 anos e até 250 mil óbitos por doenças infecciosas e crônicas, para as quais já programas de assistência e prevenção. Por se tratarem de dados preliminares e em pesquisa, a apresentação não foi disponibilizada.
Luiz Augusto Facchini, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (DMS/FM/UFPel) e presidente da Abrasco (2009-2012), defendeu que a Atenção Básica, e em particular a ESF, foi a principal inovação do SUS, e que seus desafios para consolidação e ampliação dependem centralmente do investimento agora garroteado pela Emenda. “Nossa grande preocupação é que os avanços observados ao longo de 30 anos de SUS e mais de 20 anos de ESF estão ameaçados por toda essa conjuntura de desmonte de direitos sociais que o nosso país experimenta”. Facchini evidenciou em sua apresentação dados que mostram que mesmo com a presença de mais de 40 mil equipes de SF no território nacional há grandes limitações no acesso de segmentos da população e na qualidade do serviço a elas prestado.
Na parte da tarde, os participantes se dividiram em 3 grupos temáticos para debate: 1) Força de trabalho e práticas profissionais na APS; 2) Modelo de atenção e impactos na organização dos serviços; 3) Financiamento e gestão da APS. Cada um dos eixos partiu de textos introdutórios referentes aos temas, elaborados pelos membros da Rede de Pesquisa em APS epreviamente divulgados no site da Rede.
No primeiro grupo, foram debatidos a formação e prática profissional de médicos e enfermeiros na APS, o trabalho dos ACS, a Saúde Bucal do SUS, o NASF e o papel da equipe multiprofissional. No segundo, o acesso e o acolhimento dos usuários, as práticas integrativas e complementares, a coordenação do cuidado e a promoção da saúde no âmbito da APS. No terceiro, o Financiamento da Atenção Básica, a nova PNAB, os modelos de gestão, a investigação e inovação nos cuidados primários e a saúde dos povos, dos campos, das águas e floresta, além do Programa Mais Médicos.
A partir dos debates na mesa de abertura e dos grupos temáticos, o comitê gestor da Rede vem elaborando um relatório síntese dos encaminhamentos e proposições do seminário, com essa agenda estratégica para o SUS e a APS. O documento parte da premissa que o SUS enfrenta várias ameaças atuais, numa conjuntura marcada por retrocessos, pela perda de direitos e por ataques à democracia e por cortes significativos dos gastos públicos.
Dentre eles, destaca-se o subfinanciamento agravado pela EC95 que congelou os gastos públicos por 20 anos e a reconfiguração do repasse federal aos estados e municípios pode deslocar ainda mais recursos da atenção básica para procedimentos de média e alta complexidade. Além disso, foram apontados: as mudanças recentes na Política Nacional da Atenção Básica e a proposta de criação de planos populares na saúde suplementar.
Esse contexto traz como risco desfiguração de uma APS baseada na conjugação entre necessidades de saúde, territorialização, adscrição de clientela, vínculo e responsabilidade sanitária. Com isso, há a ameaça de aprofundar uma modalidade de serviços básicos de saúde seletivos, organizados sob a lógica de atendimento “queixa-conduta. os planos populares de saúde produziriam um desmonte do sentido público e universal do SUS e a captura de clientela e de profissionais para serviço seletivo, de baixa qualidade e com pouquíssima resolutividade.
A Rede de Pesquisas em APS avançou durante o seminário preparatório e organizou o debate em temas estratégicos: a) Efeitos positivos sobre saúde da população; b) Cobertura, acesso e utilização; c) Redução das desigualdades sócio-espaciais e regionais; d) Organização da atenção; e) Avaliação, monitoramento e melhoria da qualidade; f) Formação de profissionais para atenção básica à saúde; g) Gestão do trabalho; h) Aspectos normativos e institucionais da gestão pública em saúde; i) Financiamento.
A partir da sistematização de cada um dos eixos, está sendo elaborada uma agenda estratégica da APS no SUS que será debatida durante o Abrascão 2018. Na síntese preliminar foram apontadas como proposições do seminário:
• Aumentar o financiamento para a atenção básica com ênfase na saúde da família: ampliar o financiamento do SUS para 8% do PIB, volume total a ser destinado à saúde. Recompor o valor do PAB fixo.
• Ampliar os mecanismos de redistribuição e alocação equitativa dos recursos federais e estaduais voltados para a Atenção Básica, considerando a capacidade diferenciada de autofinanciamento municipal, as especificidades regionais, a prioridade e necessidade de reforço da ESF.
• Promover a equidade na distribuição de recursos para áreas remotas e desassistidas.
• Fortalecer a atuação dos Conselhos de Saúde nos processos de formulação de políticas, controle e fiscalização da aplicação de recursos voltados para o financiamento da atenção básica, em âmbito nacional, estadual e municipal. Apoiar o fortalecimento de espaços de participação popular na saúde.
• Implementar forte regulação pública para os contratos de gestão indireta, de modo a garantir atenção de qualidade, ademais de segurança jurídica nas relações público-privado.
• Garantir acesso à atenção secundária por meio da coordenação do cuidado pela APS nas regiões de saúde. Consolidar a APS como porta de entrada para redes regionalizadas de saúde.
• Reduzir/adequar o número médio de pessoas adscritas a cada equipe de Saúde da Família conforme necessidades diferenciadas.
• Equiparar o número de equipes de Saúde Bucal às equipes de Saúde da Família e melhorar o acesso a procedimentos de média complexidade em odontologia para áreas com menor IDH.
• Implantar NASF, em todos os municípios, com dimensionamento adequado.
• Recomendar o trabalho articulado das equipes com vistas ao cuidado mais efetivo dos usuários e aumentar o escopo das práticas de outros profissionais.
• Promover o debate com gestores para qualificar o acesso das populações do campo, da floresta e das águas aos serviços de atenção primária à saúde.
• Recomendar a realização de diagnóstico situacional sobre os processos de trabalhos das equipes de atenção primária à saúde em áreas rurais. Adequar a territorialização para incluir agrupamentos populacionais esparsos
• Indicar a ampliação das práticas populares e tradicionais de cuidado por meio do acesso às práticas integrativas e complementares em saúde (PICS) e às plantas medicinais, fitoterápicos e serviços relacionados à fitoterapia.
• Ampliar ofertas de educação permanente para profissionais da APS.
• Impulsionar redes de saúde e educação para formação técnica para o SUS com valorização/ articulação das instituições públicas estaduais e federais. Recomendar a revogação imediata da Portaria 83/2018 do MS (Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde). Destinação dos recursos financeiros, previstos na referida portaria, para a oferta do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde (CTACS) em escala nacional, pelas ETSUS e pelas escolas da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.
• Promover fóruns específicos para a discussão das atribuições, do perfil profissional e do referencial curricular para o CTACS. Esta discussão deveria se dar de modo articulado com um processo mais geral de discussão do processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família, das atribuições comuns e específicas dos diferentes profissionais e do modelo de planejamento e gestão.
• Promover estratégias para a qualificação docente em todos os níveis de formação dos profissionais de saúde.
• Desenvolver ações para a melhoria da qualidade das práticas profissionais na APS.
• Promover a formação em apoio matricial nas residências médicas e multiprofissionais. Ampliar o escopo das residências multiprofissionais em saúde.
• Defesa da centralidade do território na APS: deve ser incentivado o acompanhamento do usuário no território de modo a prover o apoio social requerido, com fortalecimento da rede de apoio informal, familiar e de cuidadores, que necessariamente só pode ser realizado no território, e que tem no ACS um de seus pilares fundamentais.
• Avançar na investigação de qualidade das ações. Recomendar que os resultados das avaliações externas do PMAQ devem continuar a ser explorados e divulgados.
• Assegurar a interiorização e fixação de profissionais médicos: manter o Programa Mais Médicos.
• Promover a formação extensiva em Saúde da Família, seguindo recomendações do Programa Mais Médicos.
• Direcionar a formação de enfermeiros às competências exigidas pela APS, considerando o potencial clínico da enfermagem.
Neste momento de ataques aos direitos sociais e as garantias constitucionais, a composição dessa agenda e o fortalecimento da defesa da APS e do SUS são fundamentais. A Rede de Pesquisa em APS seguirá elaborando essa agenda. Haverá apresentação e debate desses encaminhamentos durante oficina do Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva da ABRASCO (o “Abrascão”), no Rio de Janeiro, em julho deste ano. Acompanhe!