Astana: uma conferência para se ler de trás para frente
‘É hora de agir!’, conclamam os integrantes da delegação brasileira, que apresentam aqui suas impressões sobre o evento
Todos nós estávamos preparados para ir para casa depois de três dias
de debates intensos e produtivos e de ter desfrutado da atmosfera
especial criada pelo povo do Cazaquistão. Durante os dias da Conferência
Global sobre Atenção Primária à Saúde, na capital do país, Astana,
ficamos embevecidos pelo espírito de Alma Ata nas palavras, ideias e
compromissos, mas nada sintetizou mais o momento do que a fala final
apaixonada, articulada e visionária da diretora regional para as
Américas da OMS, Carissa Etienne. Ela trouxe à tona o profundo
compromisso com a justiça social que, em 1978, encantou toda a
comunidade de saúde pública do mundo – e continua a fazê-lo. De forma
enfática, iniciou seu discurso afirmando que saúde não é mercadoria, é
direito de todos e responsabilidade governamental. Clamou por uma nova
“saúde para todos", que fosse não só sobre o acesso a serviços de
qualidade em saúde, mas além, uma força para impulsionar o
desenvolvimento sustentável, convocando outros setores a também se
comprometerem a contribuir para um mundo melhor e saudável.
A grande ovação que a dra. Etienne recebeu de uma multidão de cerca
de 2 mil participantes, autoridades, acadêmicas(os), trabalhadoras(es)
da saúde, sociedade civil e representantes do setor privado, deve ser a
imagem que, novamente, vai inspirar a saúde pública nas décadas futuras.
Pode ser que tenha sido o Cazaquistão, terra gentil e de povo solidário
e audacioso, que promoveu momentos especiais para a saúde pública, no
passado e no presente. O que é certo é que todos nós esperamos que a Declaração de Astana
inspire os líderes atuais e de gerações futuras. Ali estiveram jovens
que, pela primeira vez, participaram ativamente desse tipo de
conferência, contribuindo, às vezes, de forma mais clara e precisa que
outros expositores tradicionais.
A grande ovação que a dra. Etienne recebeu de uma multidão de cerca de 2 mil participantes, autoridades, acadêmicas(os), trabalhadoras(es) da saúde, sociedade civil e representantes do setor privado, deve ser a imagem que, novamente, vai inspirar a saúde pública nas décadas futuras.
Durante os três dias, as(os) participantes examinaram a atenção
primária à saúde no contexto da Agenda 2030. Saúde é ao mesmo tempo um
tema central, um indicador e a melhor evidência do sucesso na
implementação da Agenda.
A atenção primária à saúde é o fundamento de sistemas de saúde
sustentáveis, primeiro ponto de entrada efetivo e eficiente nos sistemas
de saúde e marco conceitual do que deve ser feito para avançar na saúde
e no bem-estar. A Declaração de Astana propõe que:
- Governos e sociedades devem priorizar, promover e proteger a
saúde e o bem-estar das pessoas, tanto no plano da população, quanto nos
níveis individuais, por meio de sistemas de saúde fortalecidos;
- Cuidados primários de saúde e serviços de saúde devem ser de
alta qualidade, seguros, abrangentes, integrados, acessíveis,
disponíveis e alcançáveis para todos e em todos os lugares, propiciados
com compaixão, respeito e dignidade, por profissionais de saúde bem
treinados, qualificados, motivados e comprometidos;
- Garantia de ambientes que propiciem a boa saúde de indivíduos e
comunidades engajados em manter e aprimorar sua saúde e o bem-estar;
- Parceiros e interessados devem estar alinhados no fornecimento
de apoio efetivo às políticas nacionais de saúde, estratégias e planos.
A apresentação do desenvolvimento do Plano de ação global para a vida saudável e bem-estar para todos,
em uma sessão de Alto Nível, serviu para promover o engajamento dos
países, das organizações internacionais, da sociedade civil e do setor
privado. O plano de ação, iniciativa de líderes globais, marca o início
de um esforço para apoiar a implementação da Agenda 2030 por meio de:
alinhar ações, acelerar a implementação e prestar contas:
Alinhar: alinhar e coordenar para reduzir duplicidades e ineficiências;
Acelerar: abordar as sete áreas transversais, nas quais esforços
mais inovadores e sinergísticos podem acelerar significativamente o
progresso na saúde global;
Prestar contas: desenvolver um esquema para avaliar os resultados e vincular os investimentos e os resultados.
Tratar os temas da Agenda 2030 e da atenção primária juntos é uma
abordagem inovadora e promissora para a saúde pública em suas diversas
dimensões, como os determinantes sociais, comerciais e ambientais da
saúde; o acesso a serviços de saúde de qualidade; pesquisa,
desenvolvimento e inovação para disponibilizar novas tecnologias para a
saúde e para enfrentar grandes desafios (segurança humana, saúde mental,
resistência antimicrobiana e uso adequado da tecnologia da informação e
das tecnologias sociais, entre outros).
"Não será fácil" era uma frase comum ouvida em muitas sessões, quando se tratava de discutir a saúde vis-à-vis
os grandes desafios econômicos, sociais, políticos e do ambiente físico
que o mundo enfrenta hoje. Todas essas áreas estão em crise e dando
sinais de que são necessárias mudanças profundas para poder ajustar o
desenvolvimento às novas dimensões da população e da crise planetária.
Muitos disseram que a saúde não é um problema ou fonte de gasto, mas
essencialmente a melhor solução para inspirar e promover as mudanças
necessárias e construir a equidade social. Tudo depende de como a saúde
será posicionada e como atenção primária terá oportunidade de ser ator
principal nesse jogo difícil.
Tratar os temas da Agenda 2030 e da atenção primária juntos é uma abordagem inovadora e promissora para a saúde pública em suas diversas dimensões
Todos trazemos mensagens claras e inspiradoras para casa. O Brasil,
com seu sistema universal de saúde, o SUS, e a Estratégia Saúde da
Família, foi mencionado várias vezes como exemplo por seu impacto
positivo no acesso e na melhoria da saúde da população, e todos nós
esperamos que, no futuro, continue sendo assim, inspirando a garantia
dos direitos humanos, da equidade e da democracia.
Na página da conferência
é possível conferir vídeos das várias sessões plenárias e paralelas
sobre temas específicos como Força de trabalho, Saúde mental,
Resistência antimicrobiana (com a participação da diretora assistente da
OMS, a brasileira Mariângela Simão) e Acesso a vacinas, medicamentos e
produtos (com a participação do diretor do Centro de Relações
Internacionais em Saúde da Fiocruz, Paulo Buss).
O documento preparado e apresentado pela Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde [em português, espanhol e inglês],
que afirma a atenção primária à saúde e os sistemas universais de saúde
como compromissos indissociáveis e direito humano fundamental, foi
compartilhado com todos os participantes do evento. Ele sintetiza a
história, os desafios e perspectivas para continuar a perseguir uma
melhor saúde para todos. A presidente da Fiocruz, Nisia Trindade, tem
liderado esforços para organizar a capacidade técnica da Fiocruz de modo
a continuar apoiando a implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
A Declaração de Astana foi submetida a consultas públicas e a
processo negociador com os Estados-membros da OMS. Foram mais de 60
horas de negociação do texto, com participação ativa do Brasil. Entre as
pautas prioritárias apresentadas pelo país destacam-se: reafirmação da Declaração de Alma Ata,
direitos humanos e direito à saúde, fortalecimento dos sistemas
universais de saúde, responsabilidade primordial dos governos na
garantia do direito à saúde, justiça social, equidade e financiamento
adequado e sustentável.
Os três primeiros artigos da Declaração de Astana reafirmam o compromisso com Alma Ata e reconhecem a importância da APS e os desafios a enfrentar:
I - Afirmamos enfaticamente nosso compromisso com o
direito fundamental de todo ser humano para o gozo do mais elevado
padrão de saúde possível de atingir, sem distinção de qualquer tipo. Na
comemoração do 40º aniversário da Declaração de Alma Ata, reafirmamos
nosso compromisso com todos os seus valores e princípios, em particular,
com a justiça e a solidariedade, e salientamos a importância da saúde
para a paz, a segurança e o desenvolvimento socioeconômico e a sua
interdependência.
II – Estamos convencidos de que o fortalecimento da atenção
primária à saúde (APS) é a abordagem mais inclusiva, eficaz e eficiente
para melhorar a saúde física e mental das pessoas, bem como o bem-estar
social, e que a APS é a pedra angular de um sistema de saúde sustentável
para a cobertura universal de saúde (UHC) e Agenda 2030 e seus
objetivos de desenvolvimento sustentável relacionados à saúde [...].
III – Em todas as partes do mundo ainda existem necessidades de saúde insatisfeitas.
Os artigos IV a VII falam sobre os compromissos:
IV – Fazer escolhas políticas ousadas para a saúde em todos os setores
V – Desenvolver uma atenção primária à saúde sustentável
VI – Empoderar indivíduos e comunidades
VII – Alinhar o apoio das partes interessadas às políticas, estratégias e planos nacionais
A Declaração também reconhece que todo sucesso da atenção primária à saúde será dependente de: Conhecimento e capacidades; Recursos humanos para a saúde; Tecnologia; e Financiamento.
Temos o que precisamos para cobrar de governos, setor privado e
organizações da sociedade civil, suas responsibilidades para promover
melhor saúde e bem-estar para todos até 2030. A trajetória a ser
percorrida pela Declaração, a partir de Astana, será: 1) exame por parte
do Comitê Executivo da OMS (Genebra, janeiro de 2019), presidido pela
embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, do Brasil, que a colocará
como parte de uma Resolução da OMS sobre APS; 2) submissão dessa
Resolução, que contém a Declaração, à Assembleia Mundial da Saúde
(Genebra, maio de 2019); e 3) finalmente, num momento importante e
singular, o tema da atenção primária à saúde será examinado pela própria
Assembleia Geral das Nações Unidas – corpo maior de decisão da ONU –
durante a Reunião de Alto-nível sobre Cobertura Universal de Saúde
(UHC), em setembro de 2019. Em qualquer desses momentos, haverá
possibilidade de os Estados-membros incidirem com aperfeiçoamentos na
Declaração, não no seu texto que, desde Astana, fica imutável, mas por
meio de recomendações às agências das Nações Unidas, aos governos dos
Estados-membros e à própria sociedade civil nacional e global, para
adequadamente implementarem os princípios aprovados.
Conclamamos todos os interessados a acompanhar esse processo
simultâneo de reafirmação e renovação da APS, nos planos global e
nacional. Que acompanhem cada fase e participem dos eventos que, ao
menos no Brasil, serão desenvolvidos pela Fiocruz, para difundir e
debater o tema da APS, no momento de incertezas que temos pela frente.
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