Docência na universidade ultrapassa preparação para mundo do trabalho
Ensinar e aprender é uma relação entre o que é conhecimento no sentido epistemológico e o que é o homem no sentido ontológico. Complexa, implica responsabilidades que nem sempre estão presentes na consciência do professor.
Profª. Drª Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira
Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
Artigo publicado em "Docência Universitária: concepções, experiências e dinâmicas de investigação". CERVI, G.M. e RAUSCH, R.B. (orgs). Meta Ed. 2014.
Introdução
A docência é uma atividade cujos significados para o aluno assumem
proporções que ultrapassam a sala de aula e perduram em sua formação. O
que orienta os docentes em sua ação pedagógica está vinculado com as
respostas que ele dá àquilo que, para ele, é o fim último da formação do
aluno. O processo de ensino e aprendizagem desenvolvido na universidade
é um processo de formação do ser humano, do profissional e do cidadão,
isto é, de um indivíduo que desempenha vários papéis na sociedade.
Não preparar para a autonomia no mundo
de hoje, onde a comunicação é um dos principais fatores de ação
política, profissional e pessoal, é fazer do estudante um servo do
sistema, um cidadão sem condições de usar seus direitos, um profissional
sem capacidade de pensar a sociedade. A aquisição de
conhecimentos, dinamizada pela ação docente e propiciada pelo currículo,
pelas disciplinas, pelos conteúdos, embora inicialmente não preveja um
alcance maior do que o de fazer com que o estudante adquira
conhecimentos específicos, tem um substrato de permanência na formação
mais ampla do aluno. Assim, quer o professor tenha consciência ou não,
sua ação em sala de aula é uma ação de formação do homem, do
profissional e do cidadão e por isso, é uma ação que ultrapassa a sala
de aula.
Neste texto vamos explorar questões que são pedagógicas no sentido mais
amplo, isto é, no sentido de formação do homem. Argumentaremos que a
ação do docente na universidade tem para o aluno significados que
ultrapassam a dimensão de prepará-los para o mundo do trabalho, pois o
estudante ao apreendê-lo também está desenvolvendo uma descoberta de si,
do mundo social, profissional e cultural. O ensinar e o aprender não é
apenas uma relação direta entre conhecimentos e mente conhecedora, mas
uma relação complexa entre o que é conhecimento no sentido
epistemológico[1] e o que é o homem, no sentido ontológico[2].
Sendo uma relação complexa, esta função fundamental da universidade se
reveste de importância e responsabilidades que nem sempre estão
presentes na consciência do professor. Discutir alguns aspectos dessa
complexidade é a intenção deste texto.
Processo de ensino e de aprendizagem: duas faces de uma mesma moeda
Para o processo de ensino e de aprendizagem ser significativo para o
indivíduo como homem, profissional e cidadão, deve ter um compromisso
com a preparação do aluno para autonomia intelectual, emocional, social,
cultural, política e profissional. A formação para a autonomia do
aluno, nesses vários âmbitos, é o propósito do ensino na universidade
desde a antiguidade e se reafirmou no modelo de universidade moderna
instituído por Humboldt (1997) ao organizar, em 1810, a Universidade de
Berlim[3], marco do modelo de universidade moderna.
Ao exercer a atividade docente, particularmente no nível da educação
superior, o professor deve responder para si algumas perguntas: Como eu
quero ser professor? Que formação quero dar ao aluno? Para qual
universidade, ou seja, para que tipo de instituição de educação
superior? Para que tipo de sociedade? Com que ideia de conhecimento
estou trabalhando?
Parece óbvio que a resposta a essas questões seja: eu quero ser um
professor que ensina; um professor que faça o aluno aprender e crescer;
um professor que permita ao aluno construir seu conhecimento. Quero
formar um profissional útil à sociedade, que favoreça o desenvolvimento
de seu país, que contribua para o avanço do conhecimento e para uma
sociedade democrática.
Estas respostas estão vinculadas a um processo mais crítico de ser
professor e menos ao histórico do papel de professor na tradição da
educação superior brasileira. Nessa tradição o professor, com raras
exceções, entende que deve passar conhecimentos técnicos e específicos
de sua disciplina e do curso. É uma tradição ligada à cultura
universitária brasileira de única e exclusivamente formar profissionais
para o mercado de trabalho. Ao seguir a tradição de ensinar os conteúdos
técnicos de uma área profissional, o professor retoma a intenção que
está vinculada com a definição do termo “professor”. O termo professor
tem raiz na palavra “professar”, que significa ter a convicção,
apregoar, reconhecer publicamente a validade do que é apresentado.
Assim, um professor “professa” saberes e conhecimentos sistematizados
para alunos que ainda não conhecem, para que estes os adquiram com a
intenção de pô-los em prática. Com esse entendimento, a relação que se
estabelece em sala de aula entre professor, aluno e conhecimentos é a de
passar conteúdos. Cabe ao aluno apreendê-los e reapresentá-los por
ocasião das avaliações.
No entanto, a relação de ensinar e aprender que se estabelece na
relação professor-aluno é mais complexa que a simples transmissão de
conteúdos, saberes e conhecimentos específicos. É complexa por ser uma
relação mediada pelo contexto social, cultural, político e psicológico
do professor e dos alunos. É complexa porque engloba aspectos que se
estabelecem em qualquer interação social, uma vez que a ação docente é,
além de educacional, uma ação social, psicológica e cultural. Os
aspectos emocionais imbricados nessa relação têm grande significado na
construção do conhecimento e são significativos tanto para os alunos que
aprendem como para os professores que ensinam. São relações de
confiança, de agregação de valores, de cultura, de empatia e de criação
de elos afetivos.
A resposta à questão sobre para qual universidade o professor está
ensinando é dada baseada no conceito de universidade que ele tem, no seu
entendimento sobre qual é o papel desta instituição na atualidade.
Normalmente o entendimento é o de que o papel da universidade é o de
formar profissionais úteis e necessários à sociedade. A polissemia do
termo útil nesta resposta pode nos levar a entender que estes
profissionais devem ser os que o mercado de trabalho necessita,
respondendo assim, às necessidades da sociedade e às necessidades do
tempo histórico em que vivemos. Muitos defensores dessa forma de pensar
entendem que a razão de ser de uma instituição de ensino superior é a de
estar formando profissionais treinados e habilitados para o mercado de
trabalho imediato, e com isso, entendem estar cumprindo o que chamam de
‘dever social da instituição de ensino superior’.
Essa lógica determina comportamentos e delineia expectativas sobre os
papéis desempenhados pelos docentes, pelas instituições e pelos alunos.
Leva a entender que se deve formar diplomados aptos para a inserção em
setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da
sociedade brasileira. Nesse entendimento não há lugar para o
desenvolvimento do ser humano e da sociedade no sentido mais amplo e não
apenas o de mercado de trabalho. A ação docente fica limitada quando
guiada por esse entendimento reducionista, uma vez que é desenvolvida em
conformidade com as expectativas do papel docente na organização
institucional. As expectativas de papéis são estruturas fixas e
estereotipadas que, se não forem rompidas, impedem a transformação
socioinstitucional, por assumirem caráter rígido e promoverem situações
institucionais que dificultam as condições para a mudança (DOTTA, 2006).
O docente que não se interroga sobre suas intenções ao ensinar terá
suas atitudes docentes guiadas por convenções externas, por imitação ou
por padronização. A vinculação principal do ensinar está nas respostas
às questões que ele faz a si mesmo sobre o seu propósito ao assumir a
docência.
Docência e autonomia
Na universidade, o objetivo principal da formação do estudante é o de promover a sua autonomia. Trabalhar a autonomia[4]
é fazer o aluno adquirir autogoverno em todos os âmbitos de sua vida
pessoal e profissional. Filosoficamente o conceito de autonomia implica
na condição de liberdade que consiste na possibilidade do indivíduo
tomar suas próprias decisões com base em sua razão, em conhecimentos
fundamentados, em pensamento refletido, em conhecimento das possíveis
consequências da decisão escolhida, em seus valores e em sua cultura.
Paulo Freire (1996), em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, refere-se ao
processo de contínua construção da autonomia, como um processo
“inconcluso” de formação do ser homem. A “inconclusão” do ser humano é um movimento permanente de aprender e se formar.
Newman (2001), um dos mais importantes estudiosos da universidade, um
clássico da literatura acadêmica cujos escritos estão influenciando a
área da universidade desde o século XIX, diz que a missão primeira da
universidade é o compromisso com a formação do homem para a autonomia e
defende que é essa a essência da atividade do ensinar na universidade.
Em Kant (1993), na obra “Conflitos das Faculdades”, obra voltada para a
educação superior, a questão da autonomia ganha força e centralidade.
Defende o sentido de autonomia considerando a formação da totalidade do
ser humano e a racionalidade em sentido mais amplo que o instrumental.
Essa definição traz consigo uma internalização das fontes morais, isto
é, a fonte da força moral não pode mais ser vista como exterior a nós e
só pode ser explicitada pelo exercício da autonomia. Em Kant, a ideia da
natureza racional como fonte de dignidade humana e a própria ideia de
dignidade estão inseparavelmente ligada à ideia de autonomia.
A autonomia é, assim, o estado do indivíduo pleno como pessoa e
profissional. O compromisso do professor, particularmente no nível da
educação superior, é com o desenvolvimento da autonomia do estudante nas
dimensões intelectual, pessoal, emocional, social, profissional,
cultural e política. Sendo estas as dimensões que devem ser trabalhadas
na educação superior, a ação pedagógica docente se estende para muito
além da ação de passar conteúdos, de treinar mentes e habilidades para
uma atividade profissional, de capacitar para um desempenho técnico
eficiente atendendo às necessidades do mercado de trabalho. Nessa
dimensão, a ação pedagógica deve atender às necessidades do indivíduo,
da sociedade e da humanidade – dimensões maiores do que a estreita
especificidade técnica das competências profissionais.
Ao olhar o ensino como ação pedagógica vinculada ao desenvolvimento da
autonomia como aqui descrita, o professor favorecerá que a educação seja
feita para formação do homem, como diz Kant (1996, p. 15) na obra
“Sobre a Pedagogia” – outra de suas obras voltadas para a questão
pedagógica: “o homem não pode tornar-se verdadeiro homem senão pela
educação".
Para ilustrar um pouco mais a importância do ensino superior com
questões mais amplas que o simples propósito de formar profissionais,
lembramos a famosa citação de Stuart Mill em seu discurso na Aula
Inaugural da Universidade de Saint Andrews, em Londres, do início do ano
letivo de 1867 (MILL, 1869/1999). A citação é longa, mas seu conteúdo
elucida a importância do papel do professor, da educação e da formação
do homem pela universidade antes que o profissional, já apontada naquela
época:
Os homens são homens antes de serem advogados, médicos, comerciantes ou
industriais; se os fizerdes homens capazes e sensatos, eles se
transformarão por si mesmos em advogados ou médicos capazes e sensatos.
Ao sair da universidade, os recém-formados não devem levar consigo
conhecimentos profissionais, mas aquilo que é necessário para guiar o
uso desses conhecimentos, para esclarecer os aspectos técnicos de seu
trabalho à luz de uma cultura geral. Sem formação geral, alguém pode se
tornar um advogado competente, mas não pode ser um advogado sábio.
Acontece o mesmo com outras atividades, mesmo as rotineiras. A educação
pode fazer de um homem um sapateiro mais inteligente, se tal deve ser o
seu emprego, mas não lhe ensinando a fazer sapatos; a educação chegará a
isso pelo exercício intelectual que ela impõe e pelos hábitos que
engendra.
Com esta abrangência, o ato de ensinar se revela uma experiência ampla
por ser um processo de construção de identidade, de construção de
conhecimento, uma relação social, uma atividade política, uma função
ética, uma ação criativa, uma prática com a pesquisa. Lembrando
novamente Paulo Freire (1996) e sua convicção sobre a importância do ato
de ensinar como um ato político: Freire argumentava que fazer do ensino
uma ação técnica é “amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no
exercício educativo: o seu caráter formador” (p. 37).
O domínio amplo do conhecimento, a capacidade de decidir, de processar e
selecionar informações, a criatividade e a iniciativa sempre foram
objetivos da educação superior, mas neste atual tempo histórico adquiriu
maior intensidade. Dessa forma, a autonomia para Giddens (1991) tornou-se uma necessidadeintelectual tanto quanto uma necessidade
emocional. Uma vez que os indivíduos precisam desenvolver uma efetiva
comunicação entre si, a autonomia traz a segurança do pensar e comunicar
suas próprias ideias. A falta de autonomia intelectual impede a criação
de novas ideias e no âmbito psicológico obstaculiza as discussões
abertas e impede a manifestação plural. Não preparar para a autonomia no
mundo de hoje, onde a comunicação é um dos principais fatores de ação
política, profissional e pessoal é fazer do estudante um servo do
sistema, um cidadão sem condições de usar seus direitos, um profissional
sem capacidade de pensar a sociedade.
A autonomia é também uma necessidade sociocultural, uma vez que a
atual sociedade traz um novo movimento cultural exigindo uma nova
direção das relações políticas e somente um indivíduo autônomo possui
condições de entender as contradições do mundo globalizado,
questionando-as e agindo no sentido de canalizar as oportunidades para
mudanças qualitativas da sociedade (GUIDDENS, 1991).
Com essa dimensão do ato de ensinar, pode-se afirmar que todo professor
deve desenvolver uma reflexão crítica sobre sua prática docente. O
professor que deixa de refletir sobre ela trabalha de forma mecânica,
repetitiva, sem pensar os significados da relação ensino-aprendizagem no
âmbito da formação do homem. Schön (1995), baseado na teoria de Dewey,
deu maior relevância ao desenvolvimento do conceito de reflexão e sugere
uma formação de profissionais reflexivos, dentre eles o próprio
professor. Nessa perspectiva, o ambiente universitário para o docente
torna-se lugar de investigação da própria ação docente. Para o autor, a
reflexão-na-ação docente (enquanto a desenvolve) e a
reflexão-sobre-a-ação (reflexão feita posteriormente sobre o que foi e
como foi feita a ação docente) possibilitam que o professor utilize o
seu próprio ensino como oportunidade de mudança de suas práticas diárias
em sala de aula, mudança em relação a como constrói o conhecimento no
aluno e mudança em como deseja fazer a relação universidade e sociedade.
Dewey (1980), psicólogo e educador americano, iniciador e defensor do
processo de reflexão na formação do aluno, apresenta que são necessárias
três atitudes para o processo de ensino e aprendizagem acontecer: a)
abertura da mente; b) responsabilização; c) reconfiguração.
A “abertura da mente” consiste em não tomar como prontos, acabados e
imutáveis os conhecimentos científicos e os saberes profissionais. Leva a
estar atento a diferentes interpretações, em permitir-se a incerteza e
sempre problematizar os conteúdos.
A “responsabilização” é a segunda atitude apresentada por Dewey e
implica no compromisso pessoal de buscar respostas próprias a toda
situação de ensino para o professor, e de aprendizagem para o aluno.
Compromisso com a reflexão sobre as consequências de cada resposta à
situação vivenciada e sobre as possíveis direções de cada escolha feita
nos âmbitos pessoal, acadêmico e político-social.
A “reconfiguração” é a ação que procede das anteriores, onde ocorre a
reorganização dos conceitos, valores, crenças e atitudes (pessoais,
profissionais, sociais e políticas).
Quando se diz comumente que um professor não consegue ensinar a quem
não deseja aprender, se demonstra a relação de abertura que o aluno deve
ter para que o processo de aprendizagem aconteça. O ensino e
aprendizagem são as duas facetas da mesma “moeda”. A imagem da moeda é
uma visualização interessante, pois, ao mesmo tempo em que as duas faces
são constituintes da moeda, elas são autônomas e diferentes, mas formam
a unidade. Assim, podemos afirmar que no processo de ensino e de
aprendizagem é necessário um grande envolvimento tanto do professor como
do aluno. É necessária a automotivação do aluno para o aprender, mas é
também necessária a postura do professor em olhar o aluno para além de
um número na sala de aula, olhá-lo como um ser em desenvolvimento que
busca sua identidade pessoal e profissional.
Nosso comportamento como docente ainda está conformado pela tradição de
entender o ensino mais como informação do que formação. Estes são
aspectos dimensionados quando se fala que ser professor envolve mais do
que o conhecimento da área específica e a perspectiva de passar
conteúdo. Envolve o necessário conhecimento pedagógico, a reflexão sobre
o que é conhecimento, sobre o papel do profissional na sociedade, sobre
o seu papel na formação da autonomia do aluno.
Docência na contemporaneidade
Qual é o compromisso do professor universitário no atual período
histórico? Vivemos hoje em uma sociedade em que, cada vez mais, se lida
com grande volume e volatilidade de informações. Esta situação nos faz,
mais uma vez, refletir sobre a importância de se transcender a
transitoriedade da situação de sala de aula focada somente no conteúdo
especificamente profissional e fazer dela a oportunidade para trabalhar
uma formação mais completa do aluno, isto é, trabalhar a sua formação
intelectual, moral e cultural. Isto reforça o compromisso do professor
com a autonomia do aluno. Para tal, muitos professores precisam operar
mudanças em seu sistema de valores sobre o que é a docência, o ensino e a
aprendizagem. Mudanças em sua forma de ver o aluno, o conhecimento, a
sociedade, ultrapassando o que são as necessidades imediatas destes para
trabalhar as necessidades mais perenes da humanidade.
A experiência de ensinar e aprender não é uma experiência de
laboratório que se pode replicar, mas é única e se diferencia em cada
situação pedagógica. Cada sala de aula é única, com diferentes alunos e
situações específicas. A docência é uma atividade social e é direcionada
de forma dialética, pelo e para os valores culturais de determinada
sociedade em determinado contexto. No entanto, o que se processa na
relação professor- aluno-conhecimento ultrapassa os limites do espaço da
sala de aula e do tempo histórico em que ocorre a relação. É uma
relação de reciprocidade onde professor e aluno se formam e se
transformam.
A relação do professor com o aluno é, na perspectiva heideggeriana, o
que deve ser a ênfase da educação. Utilizando-se de uma alegoria
descrita no livro O Ser e o Tempo, Heidegger (2006) associa a
ação de educar à ação de “cuidar”. Heidegger descreveu por meio de uma
alegoria mítica, que a educação, como a ação de cuidar, é algo que se
desenvolve por toda a vida do indivíduo. A alegoria conta que o céu, a terra e o cuidado concorreram para dar origem ao homem. O cuidado ao tomar uma porção de terra nas mãos pediu ao céu
que lhe insuflasse o espírito de vida para que este deixasse de ser
inerte e se transformasse em ser vivente. Ao dar vida à porção de terra transformando-a em ser, o céu se sentiu criador da criatura, o que foi contestado pelo cuidado. Chamaram então uma outra entidade mítica, o tempo, para pôr fim à disputa. O tempo
entendeu que a criatura deveria se chamar “homem”, pois provinha do
húmus (terra) e que sua alma, dada pelo céu, deveria voltar para lá
quando morresse, mas durante toda a vida deveria depender,
permanentemente, do cuidado (educação). Podemos tomar emprestado esse
conto mitológico de Heidegger para entender o valor e a importância da
educação como processo contínuo de formação do homem.
Em pesquisa desenvolvida por Feltram (2003) sobre as lembranças que
diferentes profissionais tinham sobre um bom professor do tempo da
universidade, a autora buscou conhecer especialmente os aspectos
reconhecidos por estes como os mais estimuladores para o seu
desenvolvimento pessoal e profissional. Feltran (2003) concluiu que as
características mais marcantes para os alunos não estavam apenas no
trato do conteúdo (inegavelmente importante), mas na condição de ter
levado o aluno à autonomia como pessoa e como profissional.
Para a grande maioria dos docentes, a formação técnica do aluno é o que
importa, é o objetivo da relação ensino-aprendizagem. A preocupação
com a formação técnica leva, de forma consciente ou não, à exclusão dos
valores éticos e estéticos, a privilegiar os benefícios econômicos e
pouco dimensionar a necessidade de pensar as consequências sociais dos
atos profissionais. A forma como as universidades se organizam e a forma
como os professores desenvolvem as aulas e os conteúdos estão
totalmente vinculadas à emergência da educação superior no período
industrial. Nesse período as empresas começaram a demandar profissionais
habilitados e capacitados para as suas necessidades, as quais passaram a
ser tomadas como as necessidades da sociedade e confundidas com as
necessidades de desenvolvimento das nações. Essa forma de ensino, que
privilegiava a formação técnica, pragmática e utilitarista, fez com que
se perdesse a preocupação com a formação do indivíduo. Ainda hoje os
professores têm para si que formar bem os estudantes é dar-lhes
condições de responderem ao mercado de trabalho, sem se questionarem que
mercado é esse.
A falta de preocupação com uma formação docente para a educação
superior é indicativo de como a questão da formação do homem, nesse
nível educacional, é pouco evidenciada. As instituições, de forma geral,
permitem que seus professores aprendam a ministrar aulas por ensaio e
erro, desconsiderando a responsabilidade de formação do aluno que a
relação docente envolve.
Essa forma de atuar na formação do estudante nos vem do entendimento
utilitarista sobre o ensino superior e da organização dos cursos por
meio de disciplinas técnicas, pragmáticas que tenham utilidade no
mercado de trabalho. É fato que os grandes progressos proporcionados
pela racionalidade científica dão respaldo a essa forma de ensinar, mas
ela toma o estudante como sendo uma “peça” necessária para a engrenagem
da maquinaria social e não como um indivíduo. É uma formação eficiente
para o mercado, mas ineficiente para o ser humano, para a sociedade mais
ampla e para a humanidade.
Morin (2007) critica esse modelo de formação afirmando que ele
proporciona uma capacidade mecanicista, disjuntiva e reducionista. Para
ele, é uma capacidade normalmente cega, que destrói as possibilidades de
compreensão, reflexão e a capacidade de julgamentos éticos, complexos e
contextuais, tornando-os profissionais inconscientes da
responsabilidade social e sem autonomia.
Um comportamento docente que é determinante para os tempos atuais é o
de assumir que ensinar é inserir o aluno na condição de criar e produzir
seu conhecimento. O pensamento tradicional de transferência de
conhecimento do professor para o aluno não tem mais lugar em quaisquer
dos níveis de educação. Ao produzir seu conhecimento, o aluno adquire
autonomia intelectual, pois o processo de aprender é composto por
condições internas e externas, particulares do aluno, nas quais a
qualidade da relação professor-aluno tem grande influência e se faz nos
espaços da contradição entre os determinantes e as possibilidades. É
acreditando que esse espaço é possível que se pode dizer da construção
do pensamento autônomo do aluno. Agir e oportunizar reflexões profundas
sobre a direção que o conhecimento toma ao ser construído e ao ser
utilizado é uma das tarefas mais importantes da docência nos tempos
atuais.
Considerações finais
Os processos de ensino-aprendizagem que defendemos para a atual
sociedade não podem ser regidos por fórmulas técnicas e pensados por
outros que não o próprio professor. Não há receitas prontas para serem
implementadas, mas princípios fundamentais trabalhados em
intencionalidades objetivadas no plano de curso do professor, nas suas
ações em sala de aula e em outras atividades do currículo, para a
formação do homem antes que para a estreita formação profissional.
É no exercício de uma atividade docente para autonomia que o professor
pode substituir práticas até então impermeáveis às mudanças, por prática
docente enquanto dimensão sociocultural da formação do homem no
estudante universitário.
O preparo docente do professor tem núcleo central na postura ética e de
respeito ao estudante como ser em formação, pois o processo de ensino e
aprendizagem reconhece a relação de formação mútua (professor e aluno),
uma relação especificamente humana de se reconstruir e, assim, pode-se
falar que o ensino e a aprendizagem é uma atividade que se estrutura com
muitas dimensões. Os aspectos que precisam ser cuidados não são só os
aspectos intelectuais, mas os emocionais, os éticos, os políticos e os
culturais.
Buscando explicitar a dimensão pedagógica na formação docente,
abordamos os aspectos demandados por uma prática educativa significativa
tanto para a sala de aula, como para além dela e se adverte para uma
postura vigilante contra todas as práticas de desumanização. Ensinar é
desenvolver o raciocínio, a capacidade de reflexão, o espírito crítico e
investigativo sobre o conhecimento, sobre o mundo contemporâneo, sobre a
sociedade e sobre as atividades que se desempenha nela e no mundo.
Será uma ação para além da sala de aula tudo o que o professor puder
plantar e o aluno puder florescer para a sua vida profissional e pessoal
visando uma melhor e mais justa sociedade.
Referências
DEWEY, J. Vida e Educação. São Paulo: Abril Cultural. Col. Os Pensadores. 2.ed. 1980.
DOTTA, L. T. Representações Sociais do Ser Professor. Campinas: Alínea, 2006.
FELTRAN, R, e MALUSÁ, S. A sabedoria no melhor professor universitário. In: FELTRAN, R e MALUSÁ, Silvana. A prática da Docência Universitária. São Paulo: Pioneira, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia:Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra. Coleção Saberes. 1996, 36ª Edição.
FREIRE, Paulo: Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.
GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.
HEIDEGGER, M. O Ser e o Tempo. Petrópolis: Ed. Vozes. 2006.
HUMBOLDT, W. Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições Científicas Superiore em Berlim. In: CASPER, G. Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro, EdUERJ. 1997.
KANT, E. O Conflito das Faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993.
MILL, J. Stuart - Ensaio sobre a Liberdade. Lisboa: Arcádia, 1964.
MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007.
NEWMAN, J.H. A Ideia de uma universidade. In TURNER, F. M. (org.) Newman e a ideia de uma universidade. Bauru; EDUSC, 2001.
SCHÖN, D. A. Formar Professores como Profissionais Reflexivos. In: NÓVOA, A. (Org.) Os Professores e a Sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
Nenhum comentário:
Postar um comentário