O SUS precisa de Mais Médicos e de Muito Mais!
As
manifestações de rua e as consequentes respostas governamentais têm gerado um
intenso debate na sociedade sobre as políticas públicas, entre elas, as de
saúde. Para o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), o momento é de
celebração do aperfeiçoamento e de aprofundamento da democracia brasileira.
Nossa contribuição nesse debate expõe nossas posições e propostas para o setor
da saúde brasileiro, cotejadas ao Programa Mais Médicos, que o governo
apresenta como estratégia para atendimento das demandas populares.
É imprescindível reconhecer que a assistência à saúde é
dependente dos trabalhadores da saúde e de sua capacidade de produzir o
cuidado. Em uma época em que se supervalorizam as máquinas, os exames e a
tecnologia, é necessário reafirmar que saúde se faz com gente. Todas as
profissões da saúde são fundamentais para uma assistência integral, ou seja, é
a equipe de saúde que será capaz de atender e resolver todos os problemas
apresentados pela população.
A suficiência quantitativa das equipes de saúde, quando
bem distribuídas, permitirá o atendimento universal da população residente em
todo o território, efetivando o direito constitucional dos brasileiros.
Entretanto, é consenso entre os gestores de todas as
esferas do SUS que, entre todas as categorias profissionais da saúde, os
médicos são os profissionais mais difíceis de prover nos serviços públicos de
saúde.
A população também reconhece esse problema quando aponta,
como mostrou recente pesquisa do IPEA, que o principal problema do SUS é a
falta de médicos. Mesmo discordando dessa assertiva, que localiza a falta de
médicos como o principal problema da saúde, o CEBES não pode deixar de
reconhecer o que mostram diversos estudos: que faltam médicos no Brasil, e que
essa falta ocorre, principalmente, no SUS. Não concordando com a argumentação
das entidades médicas, que insistem na suficiência de médicos, o CEBES
diagnostica a deficiência e a má distribuição de médicos como um problema
grave.
Por outro lado, ressaltamos que o principal problema do
SUS não é a falta de médicos. Na verdade, esse é mais um dos sintomas do
descaso crônico na implantação do projeto SUS, relegado pelos sucessivos
governos pós-constitucionais ao destino de ser um sistema de baixa qualidade
para atendimento da população pobre.
É preciso reafirmar que o principal problema do SUS é a
subordinação do setor da saúde à lógica de mercado, que se expande sufocando o
direito social previsto na Constituição. Essa lógica de mercado trata a saúde
– assim como a doença – como mercadoria, e o crescimento desse mercado, como
vem ocorrendo no país, faz com que a saúde se distancie dos princípios que
orientam o SUS enquanto expressão da saúde como um direito de cidadania.
É preciso analisar as razões pelas quais os médicos não
se vinculam ao SUS e não ocupam o vasto território vazio desses profissionais.
Nesse sentido, refutamos o argumento de que são apenas as más condições de
estrutura e trabalho que explicam a ausência de médicos no SUS. Isso só poderia
ser verdade se existisse um contingente de médicos desempregados por recusa de
condições insuficientes, o que não existe. Ao contrário, praticamente todos os
médicos brasileiros possuem um ou mais empregos, como evidenciam os estudos.
Outra pesquisa do IPEA, ainda mais recente, mostra que, em média, os médicos
brasileiros trabalham 42 horas por semana, e ganham, aproximadamente, R$
8.500,00 por mês, o que os coloca no topo de rendimentos entre as profissões de
nível superior.
O Brasil vive um ‘boom’ de crescimento do mercado da
saúde, e hoje já conta com a presença do grande capital internacional e dos
fundos de investimentos. Esse boom expressa a política concreta, que vem sendo
praticada, de promover e conduzir o setor da saúde ao mercado, e se aproveita
do resultado da política de inclusão social, pautada pela expansão do consumo,
tônica da política econômica dos últimos anos.
Essa política de ampliação do consumo, associada à
omissão, seja por falta de coragem ou de tendência na correlação de forças, que
caracteriza os últimos governos federais, que não enfrentam os interesses dos
complexos econômicos da saúde (indústria farmacêutica, de equipamentos, planos
e seguros privados de saúde, prestadores privados de serviços) e seguem
promovendo o crônico subfinanciamento do SUS, criando as condições ideais para
a expansão do mercado da saúde. Essa é a principal razão que proporciona a
concentração de médicos no setor privado e sua consequente escassez no setor
público, modelo que saqueia o SUS e gera outras graves distorções na saúde
brasileira.
As multidões de brasileiros que foram às ruas em todas as
cidades, exigindo saúde e serviços públicos de qualidade, para nós, são a
expressão de ser possível iniciar novos pactos sociais, dentro e fora do setor
Saúde, criando efetivas condições para uma mudança nessa correlação de forças,
que privilegie o interesse público ante os interesses econômicos.
Nesse
contexto de situar o direito à saúde no centro do projeto político de
desenvolvimento social e econômico do país, o CEBES chama a atenção para o fato
de que as medidas que compõem o Programa Mais Médicos são necessárias e louváveis,
porém, insuficientes para o setor, que necessita, urgentemente, de outras
medidas estruturantes de curto, médio e longo prazos. Com essas referências
para o entendimento da crise setorial, expressamos nossa preocupação e
apresentamos propostas relativas ao Pacto pela Saúde, formulado pelo Governo
Federal:
• Mediante
a injusta falta de assistência médica que acomete a população e a dificuldade
dos gestores em contratar profissionais médicos, é muito bem-vinda a atração de
profissionais médicos estrangeiros ao país. Entretanto, tal medida deve ter
caráter emergencial e focalizado para garantir o clamor do povo brasileiro, que
expressou isso nas ruas, denunciando que parcelas significativas da população
não tenham garantido seu direito constitucional à assistência médica. Simultaneamente,
deverão ser adotadas medidas estruturantes para o problema;
• Mesmo
sem tangenciar o grave problema do subfinanciamento setorial, o anúncio de
investimentos na infraestrutura das unidades de saúde, especialmente na Rede
de Atenção Básica, constitui uma medida importante e necessária, que respeita
os profissionais de saúde e, principalmente, os usuários do SUS. A medida
adequada e de longo prazo é garantir financiamento para investimentos
permanentes no sistema;
• É
preciso aprofundar as mudanças curriculares na formação médica, para além da
ampliação do tempo do curso. Sob tal perspectiva, o Ministério da Saúde, como
gestor nacional do Sistema Único de Saúde, deve fazer valer sua atribuição
constitucional de “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”,
expressa no inciso III do artigo 200 da Carta Magna;
• É
preciso que as universidades tenham como missão primeira formar os
profissionais de saúde com o perfil necessário para as necessidades da
população brasileira, ou seja, o trabalho no SUS. Para isso, é fundamental que
o ensino seja totalmente integrado à Rede de Atenção à Saúde, e que sejam
rompidos os entraves que apartam os Hospitais Universitários do SUS;
• É
igualmente necessário que a expansão das vagas e dos cursos de graduação em
medicina seja feita essencialmente via universidades públicas, e nas
localidades que mais necessitam de médicos. É preciso ampliar acesso e
interiorizar as escolas de medicina, e isso deve ser feito pela expansão da
rede de Universidades Federais.
• Tão importante quanto formar médicos
com perfil ético e humano para trabalhar no SUS é formar os especialistas
necessários para garantir a integralidade da assistência. Universalizar a
Residência Médica e torná-la obrigatória, garantindo vagas a todos os egressos
de acordo com as necessidades do Sistema Único de Saúde, é uma necessidade;
• Merece
nosso apoio a contratação estratégica de médicos brasileiros, por parte do
governo federal, para atuarem nos municípios e nas áreas de difícil
provimento, onde a ausência desses profissionais é mais sentida pela população.
Mas são necessárias mudanças na Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita a
capacidade dos municípios e estados de contratação de profissionais de saúde,
que, preferencialmente, devem estar vinculados institucionalmente aos
municípios;
• Imediatamente,
deve ser criado e implantado o Plano Nacional de Cargos, Carreiras e Salários
para os trabalhadores do SUS, conforme foi apontado na última Conferência
Nacional de Saúde. O CEBES defende a criação imediata da carreira nacional nos
moldes definidos pela Mesa de Negociação Permanente do SUS.
É fundamental que o governo federal saiba aproveitar esse
momento em que a sociedade brasileira reivindica serviços públicos de saúde com
garantia de acesso e qualidade, e corrija o erro que foi a regulamentação da
Emenda Constitucional 29, sem a vinculação do percentual de 10% da Receita Corrente
Bruta da União para a Saúde.
Com a retirada dos incentivos e as renúncias fiscais aos
planos e seguros privados de saúde, e com o incremento de recursos advindos
dos royalties do Pré-Sal e da Taxação de Grandes Fortunas, é perfeitamente
possível garantir esse patamar mínimo de investimento na saúde dos brasileiros,
sem que isso acarrete desequilíbrio fiscal.
Temos convicção de que, com o investimento adequado e com
a coragem necessária para enfrentar os interesses econômicos que incidem sobre
o setor saúde, é possível e necessário consolidar o direito cidadão à saúde e
o Sistema Único de Saúde, como demanda o povo brasileiro. O SUS precisa de Mais
Médicos e de Muito Mais...
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