Conhecimento livre
Iniciativa do Reino Unido vai mostrar até que ponto é viável oferecer toda a produção científica na internet
FABRÍCIO MARQUES |
Edição 201 - Novembro de 2012
Pesquisadores
de várias áreas do conhecimento, bibliotecários e especialistas em
ciência da informação reuniram-se no final de outubro em eventos
realizados em mais de uma centena de países para discutir os rumos do
acesso aberto, expressão que engloba um conjunto de estratégias para
difundir a produção científica de forma livre e gratuita por meio da
internet. As discussões da 6ª Semana do Acesso Aberto, iniciativa de uma
aliança internacional de bibliotecas universitárias, abordaram temas
como a influência das plataformas digitais no modo de fazer ciência, mas
também foram marcadas por um avanço alcançado recentemente. Em julho,
um anúncio feito pelo governo do Reino Unido estabeleceu que, a partir
de 2014, todos os artigos científicos que resultarem de pesquisa
financiada com recursos públicos deverão estar disponíveis gratuitamente
em meios eletrônicos. Significa dizer que ninguém terá de pagar para
ter acesso a papers de pesquisadores britânicos financiados por agências governamentais.
A iniciativa do Reino Unido é um marco pela magnitude da produção
científica do país: quase 8% de todos os artigos publicados no mundo por
ano, segundo a base de dados Thomson Reuters. A experiência poderá
alterar padrões internacionais para o acesso aberto, que hoje é dividido
em duas vertentes principais. Uma delas é a chamada “via dourada” (golden road),
em que as próprias revistas oferecem o acesso gratuito a seu
conteúdo. São típicas dessa estratégia as revistas da Public Library of
Science (PLoS) ou a coleção de periódicos da biblioteca SciELO Brasil,
um programa financiado pela FAPESP. A segunda vertente é conhecida como
“via verde” (green road). Nessa modalidade, o pesquisador
arquiva no banco de dados de sua instituição uma cópia de seus artigos
científicos publicados numa revista comercial. Quem quiser ler o artigo
sem pagar pode recorrer a esses repositórios. Surgiram outras variantes.
Algumas publicações permitem que os autores depositem cópias de seus
artigos em repositórios, mas exigem que a divulgação só seja feita de
seis meses a um ano após a publicação, para preservar seus ganhos nesse
período inicial. Outras abrem mão do embargo e divulgam artigos na
internet até mesmo antes da publicação da revista em papel – mas cobram
uma taxa adicional do autor para fazer a divulgação livre e antecipada. O
modelo foi batizado de acesso aberto híbrido, pois as publicações
divulgam tanto artigos em acesso aberto, num esquema típico da via
dourada, como papers no modelo convencional, exigindo dos leitores o pagamento de taxas ou assinaturas.
Atualmente, mais de 20% dos resultados de pesquisa no mundo são
publicados em regime de acesso aberto – no Reino Unido esse quinhão
chega a 35%. O padrão da via verde é mais comum: com exceção da área
médica, há mais artigos disponíveis em repositórios do que em revistas
de acesso aberto (ver quadro na página 38). A iniciativa do
Reino Unido pode, contudo, mudar essa tendência. O Comitê Finch, que
propôs estratégias para a comunicação científica britânica, sugeriu
prioridade na adoção da via dourada, pagando mais para que as revistas
divulguem os artigos em acesso aberto. Com isso, os repositórios
institucionais da via verde, que são bastante usados pelos pesquisadores
britânicos, poderiam enfraquecer seu papel de divulgadores da ciência
publicada em revistas comerciais.
Embora os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK) tenham afirmado
que não vão abandonar os repositórios, a expectativa é de que as
editoras apostem fortemente num modelo híbrido para os artigos
britânicos. “As revistas certamente vão ampliar a duração do embargo
para divulgação de artigos em repositórios e, assim, forçar os autores a
pagarem mais para publicar em acesso aberto”, disse Stevan Harnad,
pesquisador húngaro radicado no Canadá, que é editor de revistas
científicas e ativista do movimento do acesso aberto. Se esse caminho de
fato vingar, exigirá mais investimentos de autores e de suas
instituições para publicar seus artigos, produzindo um efeito contrário
ao proposto pelo acesso aberto, que busca simplificar e baratear a
difusão da produção científica com a ajuda dos meios digitais. Segundo o
relatório do Comitê Finch, a estratégia da via dourada vai demandar
investimentos adicionais entre £ 40 milhões e £ 50 milhões por ano, dos
quais £ 38 milhões seriam destinados ao pagamento de taxas de publicação
em acesso aberto. “Fazer uma transição para a via dourada vai gerar
mais gastos que deveriam ser evitados”, afirmou Peter Suber, diretor do
Programa de Acesso Aberto da Universidade Harvard e pesquisador da
Sparc, aliança de bibliotecas que coordenou a 6ª Semana do Acesso
Aberto.
Para
Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca SciELO Brasil,
os próximos passos desse embate forçosamente abordarão o patamar de
lucros das grandes editoras. “As editoras fazem um trabalho benfeito que
exige investimentos tanto em tecnologia como na avaliação por pares e
precisa ser rentável. Mas os lucros dessas empresas, na casa dos 30% a
40%, são desproporcionais”, afirma. “Tem agora de haver uma negociação
para definir quem vai pagar a conta e garantir que os custos,
necessários para manter a qualidade das publicações, sejam assimiláveis
pelas universidades e os autores”, explica. Um round do embate
entre editoras e cientistas aconteceu em fevereiro. A editora Elsevier,
que publica mais de 2 mil periódicos, foi criticada por apoiar um
projeto no Senado norte-americano que buscava reverter a política criada
em 2008 pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) pela qual toda
pesquisa apoiada pela instituição passou a ser oferecida em acesso
aberto. Cientistas de prestígio, entre os quais três matemáticos
ganhadores da Medalha Fields, convocaram um boicote às revistas da
editora, que acabou recuando do apoio ao projeto. “Ouvimos preocupações
de autores, editores e revisores segundo as quais o projeto de lei era
inconsistente com o nosso tradicional apoio à expansão do acesso à
literatura científica de forma gratuita ou de baixo custo”, informou a
editora. A Elsevier ainda anunciou a redução do preço do download dos artigos de matemática de cerca de R$ 45 para R$ 19 cada.
O presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), Jorge Guimarães, acredita que negociações com as
editoras podem, de fato, reduzir os custos para ter acesso às revistas.
“Temos feito isso no portal de Periódicos da Capes e vem funcionando”,
diz, referindo-se à base de dados que reúne o acervo, com textos
completos, de mais de 33 mil periódicos internacionais de todas as áreas
do conhecimento. Para acessá-la, é preciso ser pesquisador ou professor
de uma instituição cadastrada na Capes. “Há 10 anos, o acesso a 1.800
revistas consumia quase 10% do nosso orçamento. Hoje são 33 mil
revistas, que utilizam 4,2% do orçamento”, afirma. “É uma iniciativa tão
consolidada que pesquisadores brasileiros fazendo estágio nos Estados
Unidos ou na Europa preferem usar o portal da Capes aos portais das
instituições que os recebem, porque lá o acesso aos periódicos não é tão
completo”, afirma. Guimarães, porém, é cético em relação aos
desdobramentos da iniciativa do Reino Unido. “Os britânicos precisam
fazer experiências com esse modelo antes de implantá-lo. Uma imposição
do acesso aberto poderia fazer com que os britânicos deixassem de
publicar em revistas de alto impacto como a Nature, e eles
certamente não querem isso”, afirma. Segundo Guimarães, a expansão do
acesso aberto vai impor custos adicionais. “Não adianta apenas
estabelecer o acesso livre sem pensar em outros componentes. Se não
puderem cobrar pelo acesso a revistas, as bases de dados passarão a
cobrar, por exemplo, para fazer a busca dos artigos em suas ferramentas.
E essas ferramentas são essenciais para qualquer pesquisador
acompanhar o que está acontecendo em sua área”, diz o presidente da
Capes.
Não é de hoje que cientistas defendem a ideia de que o conhecimento
precisa ser difundido de forma livre para que a sociedade possa
apropriar-se dele. Mas o acesso aberto começou de fato a frutificar a
partir dos anos 1990 com o advento da internet e sua capacidade de
distribuir informação com custo baixo. A rede mundial de computadores
propiciou a eclosão de iniciativas como o repositório arXiv, criado em
1991, por meio do qual pesquisadores divulgam dados de seus estudos,
submetendo-os à análise de colegas antes que sejam publicados. Hoje o
arXiv reúne quase 800 mil textos nos campos da matemática, física,
ciências da computação, biologia quantitativa e estatística que podem
ser acessados via internet. Dados gerados pelo acelerador de partículas
do Cern, por exemplo, foram lançados primeiro no arXiv, que se consagrou
como uma ferramenta de compartilhamento de informações entre os
especialistas em física de altas energias. Nos anos 2000 novas
iniciativas tentaram organizar o caminho do acesso aberto. A Public
Library of Science (PLoS), uma organização sem fins lucrativos voltada
para estimular a criação de revistas científicas com acesso aberto,
lançou em 2003 a PLoS Biology, a primeira das sete publicações
mantidas pela instituição. O conjunto de revistas é visto como um
exemplo bem-sucedido de publicações com acesso aberto, pelo valor
modesto que cobra dos autores e por alcançar um fator de impacto
superior ao da maioria das revistas de acesso aberto. O fator de impacto
da PLoS One, por exemplo, é de 4 – significa dizer que seus
artigos são citados, em média, quatro vezes cada um em outras
publicações. Quando um artigo científico é aceito nos periódicos da
PLoS, o autor precisa desembolsar US$ 1.350. Depois disso, os textos
ficam com acesso livre para cientistas e não cientistas. Já quando o paper
é publicado numa revista tradicional de uma grande editora, o custo
médio para o autor é de US$ 2 mil por artigo. Mas os leitores também
pagam para ter acesso, por meio de assinaturas das publicações ou da
aquisição de um cópia do artigo desejado. Nos últimos anos, grandes
universidades também se empenharam em disponibilizar seu conhecimento na
rede. O Massachusetts Institute of Technology lançou o MIT
OpenCourseWare, iniciativa para colocar on-line todo o material
educacional de seus cursos. A plataforma hoje tem 1 milhão de
visitantes por mês. A Universidade Harvard estabeleceu em 2008 uma
política para divulgar os trabalhos de seus pesquisadores na internet,
criando um repositório de acesso livre.
Há um conjunto de dados que atestam a expansão do acesso aberto. O
número de revistas nesse regime teve uma forte expansão na década
passada. Dados do Diretório de Revistas de Acesso Aberto (Doaj, na sigla
em inglês) mostram que a quantidade de publicações cadastradas saltou
de 741 em 2000 para 8.282 em 2012. A adesão ao acesso aberto entre os
diversos campos do conhecimento não é uniforme (ver quadro nesta página). Um estudo publicado em 2010 na revista PLoS One,
que analisou uma amostra de artigos científicos, revelou que os
pesquisadores da área de química são os que menos recorrem ao acesso
aberto (13% do total de artigos), enquanto os das ciências da Terra são
os que mais publicam (33%). O número de repositórios de instituições no
mundo saltou de 250 em 2003 para 2.300 no ano passado. “Os avanços,
contudo, ainda não tiveram fôlego para colocar em xeque o modelo de
comunicação científica tradicional. Persiste uma forte demanda dos
pesquisadores, principalmente os de nível mais elevado, para publicar em
revistas de alto impacto vinculadas a grandes editoras”, diz Rogério
Meneghini, da SciELO.
O Brasil é o segundo do ranking de países que mais dispõem
de revistas de acesso aberto, com 782 publicações contabilizadas pelo
Doaj. Só perde para os Estados Unidos, com 1.260. “A trajetória do
Brasil é única no mundo”, diz Pablo Ortellado, professor da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da USP e membro do Grupo de Políticas
Públicas para o Acesso à Informação da universidade. “Graças à criação
da biblioteca SciELO Brasil, a estratégia do Brasil é apontada como uma
espécie de ‘via diamante’, pois sustenta um conjunto de revistas em
acesso aberto com investimentos públicos e, na maioria das vezes, não
cobra nada dos autores para publicar. Temos uma política de acesso
aberto muito bem-sucedida”, diz o pesquisador.
Lançada em 1997 como um programa especial da FAPESP, a Scientific
Electronic Library Online (SciELO) alcançou, no final de 2011, 239
publicações de todos os campos do conhecimento que geraram uma média
mensal de 36 milhões de artigos baixados da internet de forma livre e
gratuita – 1,2 milhão por dia. Os periódicos só são admitidos na coleção
depois de passarem por crivos que atestam sua qualidade, como a
existência de um corpo editorial qualificado, a relevância em seu campo
do conhecimento, a assiduidade da publicação e o cumprimento de uma
série de normas técnicas que regem a comunicação científica
internacional. Graças a esse aumento de qualidade, mais periódicos
brasileiros puderam ser incorporados nos últimos cinco anos a bases de
dados internacionais, como a Web of Science (WoS), da Thomson Reuters, e
a Scopus, da Elsevier. Em julho passado, a FAPESP e a divisão de
propriedade intelectual e ciência da Thomson Reuters anunciaram um
acordo para integrar a coleção SciELO à Web of Knowledge, a mais
abrangente base internacional de informações científicas. A hospedagem
das revistas da SciELO na base busca ampliar a visibilidade e o acesso à
produção científica do Brasil e de outros países da América Latina e
Caribe, além da África do Sul, Espanha e Portugal.
Pablo Ortellado aponta, porém, um paradoxo na situação brasileira. “O
impacto da política de acesso aberto é pequeno em áreas de pesquisa
muito internacionalizadas, como física ou biologia molecular, porque
seus autores buscam publicar em revistas internacionais de alto
prestígio, e não nos periódicos brasileiros”, diz o pesquisador. Para
ele, novas estratégias no campo da via verde, a dos repositórios
institucionais, são necessárias no país. “A USP começou a organizar um
repositório com todas as teses e artigos de seus pesquisadores, mas não
há muitos exemplos desse tipo no Brasil”, afirma. Um projeto de lei do
senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) propõe que as instituições públicas
de educação superior e as unidades de pesquisa criem repositórios para
abrigar a produção científica apoiada com recursos públicos.
Monografias, teses, dissertações e artigos ficariam disponíveis na
internet para acesso livre. O Instituto Brasileiro de Informação em
Ciência e Tecnologia (Ibict) promoveu a criação de 50 repositórios
instituicionais no país, além de contribuir com o desenvolvimento de
mais de 700 revistas científicas eletrônicas, por meio do uso do Sistema
Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER). Para integrar essas
iniciativas, o Ibict vem desenvolvendo o portal OASISBR, que integrará o
conteúdo de repositórios digitais, da Biblioteca Brasileira de Teses e
Dissertações, do SciELO e de revistas científicas eletrônicas
brasileiras. A ideia é integrar também repositórios estrangeiros. “Os
repositórios institucionais ajudam a acelerar a pesquisa em termos
globais”, diz Helio Kuramoto, tecnologista sênior do Ibict. “Os artigos
depositados em repositórios têm mais chance de serem citados e com mais
rapidez do que quando disponibilizados apenas pelas revistas
científicas. Portanto, ganham maior visibilidade. E há casos de teses
que tiveram milhares de downloads, o que seria inalcançável sem os repositórios“, afirma.