Linha de pesquisa aproxima alunos de medicina da realidade do paciente
Com ênfase na empatia, novas práticas pedagógicas privilegiam formação da identidade profissional
Já
no primeiro ano de faculdade, os nossos alunos de medicina se deparam
com isso, revela o professor Marco Antônio de Carvalho Filho, apontando
para a tela Criança morta, de Cândido Portinari. O aspecto dramático da
obra, em que uma mãe se curva diante do cadáver de seu filho, é uma
amostra da realidade com a qual o estudante passará a conviver dali para
a frente. A metáfora empregada pelo médico e docente da Faculdade de
Ciências Médicas (FCM) da Unicamp exprime a perplexidade vivenciada,
muitas vezes, pelo jovem estudante na faixa dos 18 aos 20 anos ao
ingressar em um curso de medicina.
“Já no primeiro ano, esses
estudantes passam a conhecer, de fato, a realidade social do país:
visitam unidades de saúde, entram em contato com a pobreza, sofrimento,
morte e desigualdade social. Mas, no geral, os cursos não refletem sobre
isso. Convivemos com a morte diariamente, e não conversamos sobre ela
com os alunos. Ninguém chega e pergunta: o que você sentiu, quando viu,
pela primeira vez, uma pessoa morrer? Como foi quando se deparou com o
primeiro cadáver na sala de anatomia? Quando participou do atendimento
daquela pessoa que morreu, apesar de todos os seus esforços? Quais foram
as emoções que vieram à tona?”, reflete o docente.
“Nunca ninguém
me perguntou sobre isso no curso. Às vezes, você deixa o estudante ou
recém-formado sozinho e ele lida muito bem com isso. Outras vezes, não.
Expomos o estudante ao problema, o que é bom, mas, ao mesmo tempo, não
criamos oportunidades para ele refletir sobre aquilo com a ajuda de
profissionais que já se debruçaram sobre isso várias vezes”, completa
Marco Antônio de Carvalho Filho.
Na outra ponta desta relação,
está o paciente. Num caso recente, embora extremo, um médico do
município paulista de Sumaré diagnostica as dores de cabeça e problemas
com pressão arterial de uma paciente como “falta de ocupação”.
Revoltada, a paciente torna a situação pública e entra com uma ação por
danos morais.
“O médico, de modo geral, tem falhado no seu
contrato social. O modelo é falho também. Os modelos de prática médica
estão afastados do paciente. Muitos profissionais estão insatisfeitos
com a atividade e reproduzem isso na sua relação. Especialistas de
grande parte das escolas de medicina do mundo, quando analisam a empatia
- que é a capacidade de compreender o sentimento ou reação da outra
pessoa imaginando-se nas mesmas circunstâncias – concluem que ela cai
progressivamente durante o curso. Isso é ruim porque o estudante entra
na faculdade com mais capacidade de ser empático do que quando ele sai.
Tem alguma coisa errada no curso. E lidar com tudo isso é um desafio”,
reconhece o docente.
Carvalho Filho está à frente de um trabalho
pioneiro da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), cujo foco é a
incorporação de novas práticas pedagógicas para aprimorar a formação da
identidade profissional dos futuros médicos. As atividades, resultados
de anos de pesquisas e estudos interdisciplinares, vêm permitindo uma
verdadeira renovação na prática médica, impactando positivamente,
sobretudo, no relacionamento entre médicos e pacientes.
Empatia
O
médico e pesquisador Marcelo Schweller, orientado pelo professor Marco,
acaba de defender tese de doutorado em que avalia uma série de
intervenções, visando manter ou aumentar a empatia de estudantes de
medicina da Unicamp em diferentes estágios de formação. Entre as
principais intervenções promovidas junto aos graduandos da FCM, está a
simulação de consultas médicas com casos clínicos complexos.
O
trabalho, realizado com a ajuda de pacientes-atores, formados pelo
Instituto de Artes (IA) da Universidade que integram uma companhia
teatral, suscita emoções desencadeadas pela doença e pela própria
condição de vida do paciente. As simulações são gravadas para subsidiar,
posteriormente, o debate em grupo. Há também o treinamento de
habilidades interpessoais e de comunicação, além do emprego da narrativa
reflexiva em palestras com médicos e pacientes, com ensaios sobre
experiências pessoais.
“Precisamos, na condição de médicos, nos
colocarmos no lugar da outra pessoa e sair daquele encontro com uma
proposta que faça sentido para ela. O médico não tem que aprender
somente com o médico, ele tem que aprender com o paciente também. A
medicina esteve isolada durante muito tempo, perdendo a capacidade de
aprender com outras profissões. O professor, por exemplo, precisa se
colocar no lugar do aluno para elaborar uma proposta que faça sentido
para ele. O ator, também. Portanto, por que atores, professores e
médicos não podem ter aula juntos sobre isso?”, propõe o orientador.
Marcelo
Schweller explica que o estudo utilizou uma escala psicométrica para
medir a empatia do estudante. Os resultados demonstraram que a empatia
aumentou consideravelmente em praticamente todos os alunos que passaram
pelas atividades de intervenções. “A relação médico-paciente é o
fundamento da prática da medicina. Entre os fatores que permitem o
sucesso dessa parceria, a empatia se destaca como um dos mais
importantes. Existem evidências científicas que associam a atitude
empática do médico com a satisfação do paciente, melhor adesão ao
tratamento e melhores desfechos clínicos”, fundamenta o pesquisador.
Ele
exibe outros resultados relevantes dos trabalhos. “Apesar da exposição,
de atender na frente dos colegas e dos professores, mais de 80% dos
alunos ficaram à vontade nas consultas simuladas. Quase 100% se sentiram
à vontade durante a discussão. Depois da atividade, 94% deles acharam
que a capacidade de ouvir o paciente estava melhor; mas não só de ouvir o
paciente: 91% acreditam que a capacidade de ouvir o próximo também está
melhor.”
A motivação dos estudantes após as atividades também
aumentou como consequência das intervenções. Depois da atividade, cerca
de 60% dos estudantes ficaram motivados a estudar não somente a relação
médico-paciente, mas os conteúdos de medicina como um todo. Quase 100%
consideraram uma aplicação deste aprendizado na vida profissional e mais
de 90%, também na vida pessoal.
“O processo pedagógico é baseado
no reforço positivo, não sendo raro os alunos se emocionarem durante a
intervenção. Para alunos e professores, a atividade resgata a motivação
inicial que os levou a escolher a profissão. Os resultados, por outro
lado, sugerem que é possível manter ou mesmo aumentar os níveis de
empatia por meio de metodologias ativas de ensino em diferentes estágios
da formação médica”, conclui Marcelo Schweller.
O grupo da
Unicamp conta com a colaboração da professora Eloisa Helena Rubello
Valler Celeri, do Departamento de Psiquiatria Infantil da FCM; do
docente Flávio César de Sá, do Departamento de Saúde Coletiva da FCM e
da professora e educadora, Márcia Maria Strazzacappa Hernandez, da
Faculdade de Educação (FE). Há, ainda, mestrandos e doutorandos
desenvolvendo novas pesquisas na área de metodologias ativas para o
ensino de graduação em medicina.
Os resultados, conforme o docente
Marco de Carvalho, vêm sendo apresentados periodicamente em congressos
mundiais de educação médica, como os da Association for Medical
Education in Europe (AMEE), realizados em Lyon, na França, em 2012; e em
Praga, na República Tcheca, em 2013.
“Este é um dos primeiros
projetos do país em educação médica apoiado pela Fapesp. Também contamos
com o apoio da Capes. Simulação muitas escolas de medicina fazem, mas
do modo como é feito aqui, é pioneiro não só no Brasil, mas no mundo.
Juntamos dois universos para lidar com a parte afetiva da relação
médico-paciente: o da psicologia médica e o da simulação. Somos um dos
poucos grupos brasileiros que têm apresentações orais anualmente em
congressos europeus de educação médica, onde está a vanguarda da área”,
destaca.
Currículo oculto
A
perda da empatia ao longo dos anos do curso de graduação tem como umas
das causas principais o que os pesquisadores denominam de currículo
oculto. “O estudante têm várias experiências na faculdade que não são
somente as experiências em sala de aula e supervisionadas. Essas
experiências também vão moldando a personalidade e a identidade
profissional desses alunos. E nem todas essas experiências são
positivas. Isso é o que chamamos de currículo oculto em medicina. O
risco é o estudante chegar ao final da faculdade e virar um super-herói
diferente”, brinca o professor Marco de Carvalho.
Durante o estudo
de doutorado, Marcelo Schweller identificou, por meio dos relatos dos
estudantes, uma relação conflituosa entre as experiências do currículo
oculto em oposição à ideia de uma prática médica pautada na ética, com
interesses do paciente em destaque. Conforme o pesquisador, o estudante
sente o desconforto proveniente desse conflito, mas não reflete sobre
ele, vivenciando suas experiências de maneira anestesiada ou cínica, o
que adia o estabelecimento de uma identidade profissional virtuosa.
“Queremos
formalizar o currículo oculto, trazer para o debate. A formação dos
futuros médicos precisa estar pautada em valores e virtudes, que surgem
da necessidade primordial de colocar os interesses do paciente acima dos
interesses do próprio médico. Para respeitar isso, o médico precisa ter
uma fidelidade à verdade científica, mas também à verdade humana”,
salienta o docente.
Além do conhecimento técnico e das
humanidades, como sociologia, antropologia e filosofia, ele precisa ser
um bom médico, cuja prática esteja fundamentada na compaixão ou mesmo na
caridade, completa. “Precisa ativamente se colocar no lugar do outro, e
preservando sua própria alteridade, reconhecer, entender e compartilhar
o sofrimento e angústia causados pela doença. Só assim ele poderá
individualizar o plano terapêutico de seus pacientes e elaborar
propostas que façam sentido para a pessoa que se encontra doente.”
Ainda
de acordo com o professor da Unicamp, o debate sobre a formação de uma
identidade profissional dos futuros médicos passa por um processo de
empoderamento do próprio estudante. “Queremos que o aluno se
conscientize sobre isso: ‘bom, eu estou neste momento sendo submetido a
vivências e experiências que vão me ajudar a definir quem eu serei.’ Mas
que seja um processo ativo de escolha. E neste meio tempo queremos
incorporar o debate dos valores e das virtudes para garantir que a
prática profissional seja realmente dele, e não um processo repetido. Se
na área de humanas este debate é corriqueiro, na área médica ele
praticamente não existe. A nossa vontade é que o aluno assuma as rédeas
sobre isso, mas baseada em valores e virtudes.”
O pesquisador
Marcelo Schweller ressalta, por sua vez, que as atividades com apelo
realístico que apresentem a medicina de uma forma positiva podem se
tornar um fórum para o debate de temas relacionados ao currículo oculto,
o que estimula a reflexão sobre o tema. Esse tipo de atividade pode
motivar o estudante no processo de ensino-aprendizagem, permitindo a
recuperação do significado pessoal e social da prática da medicina,
argumenta.
“Durante a simulação, cada paciente tem uma dinâmica
emocional principal. Tem um caso que trabalhamos com a perda, com o
luto. Tem outro caso em que trabalhamos com a questão da autonomia, de
como valorizar e incluir a autonomia no plano terapêutico. Outros ainda
são centrados no sentimento de raiva, no conflito, na resistência em não
aceitar o tratamento. Toda consulta simulada tem uma ambiência
emocional por trás”, revela.
Fragmentação
O
desenvolvimento tecnológico da medicina passou por um crescimento
exponencial no último século, acentua o médico Marco de Carvalho. Com as
especialidades e o aperfeiçoamento técnico, o número de doenças que são
tratadas atualmente é muito superior àquelas tratadas no passado.
Embora tenha contribuído para o bem-estar da sociedade, esta
fragmentação impulsionou a prática médica a focar mais na doença do que
no paciente, pondera o professor.
“Isso
é um grande problema. Muitas vezes, quando o profissional vai tratar um
caso complexo, ele divide em um monte de casos específicos, mas não
necessariamente a solução de todas as partes será a solução do todo.
Esse é o nosso desafio porque a medicina fragmentou o paciente demais,
mas ele continua sendo um só. Às vezes o profissional tem a habilidade
de ir até a parte, mas nem sempre tem a habilidade de voltar ao todo.
Portanto, a medicina corre o risco de se esquecer do paciente enquanto
está cuidando da doença”, alerta.
A tese defendida por Marcelo
Schweller mostrou que determinadas especialidades médicas também estão
associadas aos níveis de empatia de estudantes de medicina. Aqueles que
pretendem especialidades com contato direto com os pacientes, como
medicina de família, clínica médica, psiquiatria e pediatria, apresentam
níveis de empatia maiores que os estudantes que buscam especialidades
orientadas por tecnologia ou procedimentos, como anestesiologia,
radiologia e patologia.
Publicações
Artigo
- Schweller M, Costa FO, Antônio MÂRGM, Amaral EM, Carvalho-Filho MA. The impact of simulated medical consultations on the empathy levels of students at one medical school. Acad Med. 2014;89(4):632-7.
Congressos
- Apresentação oral do trabalho “The impact of simulation of medical consultations on medical student empathy levels”, de autoria de Marcelo Schweller, Felipe Osorio Costa, Eliana Martorano Amaral, Maria Angela Reis de Goes Monteiro Antonio, Marco Antonio Carvalho Filho no congresso internacional AMEE 2012, em Lyon (França), realizado entre 27 e 29 de agosto de 2012.
- Apresentação oral do trabalho “It is good to be a doctor: preserving empathy through a positive look into the practice of medicine”, de autoria de Marcelo Schweller, Eloisa Celeri e Marco Antonio de Carvalho Filho no congresso internacional AMEE 2013, em Praga (República Tcheca), realizado entre 24 e 28 de agosto de 2013.
- Apresentação em forma de pôster eletrônico “Simulated medical consultations with an extended debriefing: Students’ perception of learning outcomes, de autoria de Marcelo Schweller, Silvia Passeri e Marco Antonio de Carvalho Filho no congresso internacional AMEE 2014, em Milão (Itália), realizado entre 30 de agosto e 03 de setembro de 2014.
Tese: “O ensino de empatia no curso de graduação em medicina”Autor: Marcelo SchwellerOrientador: Marco Antonio de Carvalho FilhoUnidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)Financiamento: Fapesp e Capes
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