A missão de levar medicina para quem mora na rua
Médica e professora na Universidade de Novo
México, a norte-americana leva estudantes da área de saúde a cuidar de
pacientes considerados sem-teto na cidade de Albuquerque
Thaís Brito
O contato com o lado
mais frágil da humanidade marcou a vida de Cynthia Arndell desde a
adolescência. Como estudante de intercâmbio no Sul do Brasil, ela
vivenciou o descaso com a população de rua e levou consigo a vontade de
fazer mais pelos pobres. Daí o interesse em cuidar das mazelas do corpo.
Na vida adulta, abraçou a profissão de enfermeira e se deparou com a
complexidade de pacientes idosos ou com problemas mentais em
Albuquerque. Logo conheceria o trabalho nos abrigos e hospitais voltados
para pessoas sem-teto, na década de 1980.
Mas não parecia
ser o suficiente. Aos 40 anos, concluiu a graduação em Medicina enquanto
buscava levar conforto às dores de quem dormia nas ruas ou nos abrigos.
E inquietou-se ao perceber que nem todos os profissionais conseguiam
olhar e compreender os mais vulneráveis. Como membro do corpo docente da
Universidade do Novo México, foi fazendo com que os estudantes da área
de saúde se aproximassem do problema. Até que, em 2009, criou a
disciplina de Medicina de Rua, propondo atendimento nas ruas e
transmitindo a experiência de lidar com a multiplicidade das vidas em
jogo. A seguir, a entrevista concedida por Cynthia Arndell durante
participação no encontro do “Programa de Desenvolvimento Docente para
educadores das Profissões de Saúde”, em Beberibe, em fevereiro último.
Aos 56 anos, ela revela nunca ter falado tanto de si.
O POVO – Aos 17 anos, você morou no Brasil. Em que esta experiência acrescentou para a sua vida?
Cynthia Arndell
- Fui aluna de intercâmbio em 1975 na cidade de Curitiba. Estive aqui
por sete meses. Eu observava a pobreza no Brasil durante aquele tempo.
Ver as pessoas mendigando nas ruas e outras passando sem nem olhar para
elas teve um impacto profundo para a minha jornada e para as escolhas da
minha carreira. Eu vivi com uma família brasileira e aprendi muito
sobre mim mesma. Eu estava em uma cultura completamente diferente.
Aprendi a viver com pessoas muito mais calorosas, que se abraçavam. Eu
me lembro de voltar para os Estados Unidos e achar as pessoas tão frias!
Aqui você abraça mais as pessoas, você toca o outro. Eu nunca desisti
disso. Nunca abri mão deste contato porque é maravilhoso. Sou alguém que
abraça, que toca as pessoas. E meus pacientes adoram isso, faz uma
grande diferença.
OP – E quando começou a trabalhar com as pessoas que moram nas ruas?
Cynthia
– Na década de 80 (do século passado), eu ainda era uma enfermeira. Um
dos abrigos que estavam sendo abertos em Albuquerque (Novo México) era
voltado para mulheres e crianças. Era chamado Barrett House. Meu marido e
eu começamos a trabalhar no abrigo e ajudar as pessoas. E eu me
apaixonei por este conceito. Achei tão importante, que nas noites das
terças-feiras eu passei a ir como voluntária para dar aulas sobre saúde
para mulheres e cuidados com os filhos. Fiz isso por muitos anos. E
quando decidi frequentar a faculdade de Medicina, eu já não tinha tanto
tempo para me dedicar. Então continuei a ficar envolvida em conselhos
diretivos para agências que ofereciam serviços para os sem-teto. No
final da faculdade, eu pude escolher estágios em serviços de assistência
para os sem-teto. E me apaixonei pelo cuidado destas pessoas. E soube
que era para aquilo que eu queria dedicar minha vida. Depois da
graduação, eu trabalhei em uma clínica cuidando de pessoas ricas. E eu
não gostei. Eu queria cuidar de pessoas realmente pobres e sem lar.
Então eu consegui um emprego como diretora de um hospital de assistência
para os sem-teto. Fiquei lá e percebi que queria ensinar os alunos de
Medicina a atender as pessoas da rua e as mais vulneráveis. Eles não
sabiam como fazer isto direito. Então quando entrei para o corpo docente
na Universidade de New Mexico, comecei desenvolvendo gradualmente um
currículo para que parte dele fosse adotado pelo curso de Medicina. Era
uma proposta de dar atenção às necessidades dos sem-teto.
OP – E quem são os sem-teto em Albuquerque?
Cynthia
– A definição de sem-teto nos Estados Unidos é de qualquer pessoa que
está vivendo nas ruas, no seu carro ou em locais considerados
inabitáveis. Como espaços públicos ou prédios abandonados. A definição
também inclui pessoas que dividem lares, como duas famílias vivendo em
um apartamento juntas. Você vê muitas destas situações entre imigrantes
ilegais. Esta definição é importante para atrair financiamentos. Existe
assistência médica para os sem-teto em todo o País. E eles são
financiados pelos governos federal e estadual. Há também um grande
problema de pessoas sem-teto sem documentos. Mesmo que tenham nascido
nos Estados Unidos. Temos serviços que ajudam estas pessoas a recuperar
seus documentos.
OP – Como funciona esta assistência médica para o sem-teto?
Cynthia
– Oferece toda a ajuda que o paciente precisa. E eles não precisam
provar que não têm lar. O que fazemos é perguntar onde eles dormiram na
noite passada. Ensinamos nossos alunos a fazer esta pergunta porque eles
não querem se identificar como sem-teto, é constrangedor. Temos
atendimento clínico, laboratório, farmácia com vários medicamentos -
inclusive psiquiátricos. E existe a ala de odontologia. O motivo disso é
porque ir ao dentista nos Estados Unidos é muito caro, mesmo se você
tem um plano de saúde. Uma das mais importantes formas de identificar a
pobreza e situação de rua são dentes ruins. Então, a filosofia na
maioria destas agências de assistência médica é tirar estas pessoas da
situação em que estão. Não esconda o problema, ajude-os a sair da rua.
Uma das maneiras de fazer isto é fazer com que eles consigam um emprego.
E é difícil arranjar trabalho quando os seus dentes estão feios. O que
eles fazem é oferecer bons serviços em odontologia, o que reflete na
autoestima das pessoas e na capacidade de arranjar trabalho.
OP – Então esta é uma das prioridades? É o primeiro serviço para eles, o odontológico?
Cynthia
– Não. A primeira coisa a ser cuidada são os problemas físicos. E
também os problemas mentais. Muitos deles têm problemas psicológicos.
Também cuidam do vício ou do uso excessivo de substâncias químicas. Nós
temos grandes problemas com os estereótipos dos desabrigados. É isso que
trabalho com meus alunos. O que acontece é que pensamos em pessoas sem
lar como as piores pessoas nas ruas, pensamos que são todos alcoólatras.
Esta é apenas uma parte da população da rua. A população que cresce
mais rápido nas ruas é a de famílias com crianças. E também de pessoas
que podemos chamar de veteranos de guerra. Mas os serviços para estes
veteranos dentro dos hospitais são muito bons.
OP – Então o estereótipo projetado para as pessoas que vivem nas ruas são de problemas com álcool e drogas.
Cynthia
– E sujeira. Viciados em drogas, sujos e loucos. Mas a grande maioria
dos sem-teto é invisível. O que quero dizer é que você não vê a maioria
deles nas ruas. Você pode vê-los em abrigos. Eles não estão expostos.
Então temos uma tendência a pensar que os vagabundos representam todos
eles. Outra coisa que ensino é olhar para estas pessoas. O cara está na
rua, e as pessoas nem olham para ele. É a mesma coisa com a pobreza,
você apenas não olha para ela e não presta atenção. Então um dos
exercícios que proponho a todos os meus alunos de Medicina é ouvir a
história de meus pacientes que tenham a experiência de viver na rua.
Assim, os alunos começam a perceber que estas pessoas são dignas,
inteligentes. Eles compartilham a história de como foram parar nesta
situação. E, muitas vezes, é porque a nossa economia acabou tirando
estas pessoas de suas casas. É o que geralmente vem acontecendo. A casa
deles se tornou impossível de manter. Eles perderam o emprego e não
conseguiram suportar as despesas. Então ouvi-los é um começo para vê-los
como seres humanos. O segundo passo que proponho é formar duplas que
vão a todas as agências. Eles aprendem sobre as agências e entrevistam
os pacientes. Assim, eles percebem que as histórias contadas revelam
pessoas normais com sentimentos normais. Isto humaniza a pessoa
atendida. Há inúmeros artigos sustentando a tese de que se estas pessoas
se sentem acolhidas pela assistência médica, há mais chance de que eles
procurem um médico quando precisarem. Eles tendem a usar as salas de
emergência de forma inapropriada, seja porque procuram quando é tarde
demais ou quando estão doentes demais. A assistência busca quebrar todas
as barreiras de precisar ter um plano de saúde, de preencher
formulários e papéis, de precisar de uma consulta agendada, de vir em
determinadas horas.
OP – Em relação aos alunos de Medicina, você sentiu que eles precisavam de ajuda para estabelecer contato com quem mora nas ruas?
Cynthia
– Não apenas com estas pessoas. Estamos falando de qualquer pessoa em
situação de vulnerabilidade. Como você cuida dela? Qual a sua
responsabilidade? É parte do seu profissionalismo, é parte da missão que
você assume como médico. É cuidar das pessoas. O trabalho é realmente
ensinar os alunos a entender o impacto dos acontecimentos, do ambiente,
dos relacionamentos, de como tudo isto influencia a saúde dos sem-teto.
Não é apenas o fato de não ter um lar, é um cenário muito maior. E
requer um currículo muito maior do que eu ajudo a desenvolver na
universidade. O que faço é apenas um pedaço do que eles precisam
aprender.
OP – Como funciona este seu trabalho com os estudantes? O que eu precisaria fazer se fosse uma das suas alunas?
Cynthia
– Todos os alunos precisam fazer entrevistas com os pacientes. É uma
das atividades que eu proponho. Eu coordeno os alunos que fazem
atividades voluntárias com moradores de rua e coordeno a disciplina
opcional de Medicina de Rua para alunos do último ano de Medicina e
Farmácia. São basicamente entrevistas e atendimento nas agências. Quanto
mais você conseguir fazer o contato dos alunos com estas pessoas e com o
sistema de saúde voltado para elas, mais eles acreditam na importância
deste trabalho. Mas não é algo fácil de ensinar. Se você não mostra tudo
isso da forma correta, pode fazer com que os alunos fiquem ainda mais
insensíveis. Eu passei muito tempo para aprender a mostrar este problema
de forma a fazer sentido para os estudantes. Eu não me importo se eles
vão trabalhar com a atenção básica, mas eu me preocupo com a
responsabilidade social destes profissionais. Quero saber se eles se
responsabilizam pelo cuidado dos mais necessitados. Eu ensino e cuido da
grade curricular. Além disso, ainda tenho meus próprios pacientes e
também vou nas noites de terça-feira e tardes de sábado para diferentes
abrigos com alunos de Enfermagem, Medicina e Farmácia.
OP – É como mostrar uma realidade que você mesma aprendeu quando entrou em contato com este trabalho.
Cynthia
– Exatamente. Eu aprendi a trabalhar em equipe. É a única forma de
lidar com as necessidades destes pacientes. A realidade deles é de uma
vida tão caótica, que eu não via alguns por semanas ou nunca mais veria.
Vou contar uma história que ficou na minha mente. Havia uma mulher nos
seus 30 anos e que tinha a pressão muito, muito alta. Como consequência,
ela tinha dores no peito. Ela poderia ter um infarto. Nós não
conseguíamos convencê-la a ir à sala de emergência. Sabe por quê? Porque
não havia quem fosse buscar os filhos dela na escola. O que pudemos
fazer foi conseguir um dos gerentes do caso ir pegar as crianças e dizer
a eles que mãe deles estava bem. Você imagina como nos sentimos? Foi
horrível. Mas é este o trabalho em equipe.
OP – E quanto às doenças destas pessoas?
Cynthia
– Eu via os mesmos problemas do resto da população. Doenças
cardiovasculares, diabetes... Mas estavam muito mais fora de controle,
eram pessoas muito mais doentes. E os pacientes parecem ser tão mais
velhos por causa de suas vidas difíceis. E, para completar, não têm
recursos. Estes foram os pacientes que vi. E também fiz muitas visitas
nas ruas. Eu ia com grupos de cinco a sete pessoas. Oferecíamos
informações sobre saúde, comida. E cada um lidava com uma determinada
população. A minha, além de ser da clínica para os sem-teto, era o
cuidado com prostitutas. Nos Estados Unidos, a maioria das prostitutas
trabalha para sustentar o vício em drogas. Não é para ganhar muito
dinheiro. As adolescentes se prostituíam por comida e abrigo. As
mulheres mais velhas ganhavam dinheiro para as drogas. E os homens
também por drogas. A maioria destes pacientes vivia nos motéis (hotéis
mais econômicos) ou dividiam o lar com mais alguém.
OP – E que tipo de ajuda você levava a estas pessoas?
Cynthia
– O que eu levava era medicamento se eles estivessem doentes. Muitos
deles tinham infecções e feridas que eu teria de cortar para fazer uma
drenagem. Se eles tinham pressão alta, asma, diabete, eu poderia levar
ajuda. Depois de um tempo, começamos a oferecer exames para as mulheres.
Você tem de estabelecer um contato no qual eles confiem. Se você não
consegue a confiança, algo está errado. E às vezes, era problemático.
Uma das coisas mais importantes que vi muito nos treinamentos de quando
eu fazia estes atendimentos era que precisávamos aprender a construir a
confiança. Também aprendíamos como fazer entrevistas motivacionais.
Encontrar os pacientes onde eles estão e sem julgá-los. É o princípio
por trás da assistência. Eu aprendi tanto, e pude pensar em todos os
meus anos como enfermeira para criar essa disciplina opcional para os
alunos do último ano de Medicina.
OP –
Quero tocar na questão dos abrigos. Em Fortaleza, a nossa realidade é de
poucos equipamentos públicos para a população de rua. Praticamente,
eles não têm onde dormir. Como é o acolhimento em Albuquerque?
Cynthia
- Quanto aos locais para dormir, a realidade é até boa. Se não há vaga
em um abrigo, podemos comprar pernoites em motéis. No inverno, porque
fica muito frio, nós abrimos uma prisão desativada na cidade para que
estas pessoas não durmam nas ruas. Mas a qualidade dos abrigos varia. A
maioria é muito boa.
OP – E quem financia estes abrigos?
Cynthia
– Isso também varia. Eles são mantidos, principalmente, pelas igrejas.
Muitos outros recebem verbas do governo federal e do Estado de Novo
Mexico. São aproximadamente mil pessoas procurando por um abrigo todas
as noites.
OP – O município toma alguma responsabilidade por esta população?
Cynthia
– Sim. Metropolitan Homeless Project é um exemplo de iniciativa do
município. Mas há um projeto bem interessante da Prefeitura chamada
Albuquerque Heading Home (Albuquerque Volta para Casa). É uma iniciativa
já implementada em outras cidades dos Estados Unidos. Uma dos gerentes
de um abrigo de Albuquerque trouxe o projeto para a cidade e conseguiu o
apoio do município. O que o programa faz é identificar os moradores de
rua com situação mais vulnerável. Eles usaram critérios para determinar a
probabilidade de cada uma delas de conseguir sobreviver nas ruas pelo
período de um ano. Então, eles providenciam uma casa para eles e mantêm
um acompanhamento. O sucesso do programa é notório. Eles têm conseguido
mostrar, com a ajuda de pesquisadores, que providenciar casas para estas
pessoas muda a vida deles. É maravilhoso. Um dos melhores resultados é
mostrar que esta iniciativa economiza dinheiro para o sistema de saúde.
Isto mantém estas pessoas fora das salas de emergência. As pessoas que
moram nas ruas são as que mais lotam o sistema público de saúde, e elas
custam caro para o governo.
OP – Você fala de um trabalho de equipe para ajudar os sem-teto. Isso também vale para a esfera do poder público?
Cynthia
– Tem que ser uma grande equipe. Porque um médico pode apenas colocar
um band-aid no problema. Se você não pode colocar estas pessoas em um
lar, você não consegue melhorar nada. O que eu ensino é que moradia
também é saúde. Políticas públicas também impactam na saúde. É um fato: a
pessoa vai ser mais saudável se tiver um lar. Albuquerque Heading Home
mostra isso há cerca de dois anos. Estas pessoas ficam ótimas quando têm
moradia. Embora haja um fenômeno interessante: alguns deles morrem
assim que conseguem a moradia. Não sabemos por quê. Eu acho que é porque
eles estavam perto de morrer, e na casa eles puderam descansar e
relaxar. Também talvez porque eles perderam vínculos com suas
comunidades na rua. É tudo muito complexo.
OP
– O problema com as pessoas que moram nas ruas não é uma especificidade
de Albuquerque ou das cidades norte-americanas. É um problema espalhado
pelo mundo. Como você, como médica e pesquisadora, vê este problema
mundo afora?
Cynthia – É uma problemática
diferente em cada local. As causas são diferentes ao redor do mundo. Mas
no fundo, a causa principal é a mesma: a pobreza. Pobreza é o fator
mais determinante para os problemas em todo o mundo. É a pobreza que
deixa as pessoas sem lar. É a inabilidade de se manter. É um problema
que não é justo. São pessoas que não têm o mesmo acesso à moradia, à
saúde e à dignidade. Acho que, para além disso, precisamos ensinar aos
médicos sobre as determinantes sociais da saúde das pessoas. Eles
precisam saber que os mais vulneráveis são de sua responsabilidade. Não é
algo fácil de ensinar.
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