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Carlos Octávio Ocké-Reis* A Constituição de 1988 definiu que todo cidadão tem direito ao Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o mercado de planos de saúde conta com pesados incentivos governamentais que representam uma peça-chave para a sua reprodução econômica: os planos são pagos pelas famílias, pelos empregadores e pelo próprio Estado via renúncia fiscal. Os gastos com planos de saúde podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar, tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica, o que reduz a arrecadação do governo federal. Se essa parcela dos impostos não fosse subtraída, poderia servir de base para aplicar dinheiro novo no setor público. Em 2011, a renúncia foi de R$ 15,8 bilhões, quase um quarto do gasto público federal em saúde. A renúncia com planos responde por R$ 7,7 bilhões desse total. Em contrapartida, o lucro líquido das operadoras cresceu, aproximadamente, três vezes em termos reais entre 2003 e 2011, alcançando R$ 4,9 bilhões no último ano. Esse tipo de gasto público indireto tende a afetar o SUS sem melhorar a qualidade dos serviços privados. Mas como? De várias maneiras: a renúncia subtrai recursos do SUS, que poderiam melhorar seu acesso e qualidade; ela reforça a iniquidade do sistema, piorando a distribuição do gasto público per capita para os estratos inferiores e intermediários de renda; os lobbies agravam tal iniquidade, dado que o poder econômico pode corroer a sustentabilidade política do SUS; os subsídios não desafogam completamente o SUS, já que a clientela dos planos continua utilizando seus serviços –vacinação, urgência e emergência, banco de sangue, transplante, hemodiálise, serviços de alto custo e de complexidade tecnológica etc. Assim, o SUS acaba socializando parte dos custos das operadoras. A Agência Nacional de Saúde (ANS) tem demonstrado rigor no que se refere às negativas de cobertura e tempo de espera, exatamente porque os planos não entregam o que prometem e a insatisfação dos consumidores não para de crescer. Desse modo, se os recursos oriundos da renúncia fossem aplicados na atenção primária (no Programa de Saúde da Família, por exemplo) e na média complexidade, o governo federal poderia justificar, sob o critério da equidade, a redução ou eliminação da renúncia de arrecadação fiscal. Parece razoável ao menos reivindicar que o Estado atue no sentido de atenuar esse conflito distributivo, regulando de alguma forma os subsídios dirigidos aos estratos superiores de renda. Afinal, além de regressivos, eles favorecem a lucratividade das operadoras, que estão cada vez mais concentradas, centralizadas e internacionalizadas. Para tornar crível essa política, o governo federal deve ampliar o financiamento, melhorar a gestão e fortalecer a participação social do SUS. Isso sem perder de vista a criação de estruturas institucionais e mecanismos regulatórios que reduzam o gasto das famílias e dos empregadores com planos privados de saúde, serviços hospitalares e remédios, tornando nosso sistema de saúde verdadeiramente único e universal. * Carlos Octávio Ocké Reis é é técnico de planejamento e pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Diest/Ipea). Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 15/03/2014 Leia também: "O SUS que temos e o SUS que queremos" "O Movimento Saúde +10 e a luta pelo financiamento adequado do SUS" |
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