quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Epistemologia da Saúde


A busca da verdade no campo científico da saúde

 

Inicio este debate com fragmentos de um editorial escrito em 2004 pelo Dr. Atallah, Diretor do Centro Cochrane no Brasil: "reduzindo-se as incertezas sobre a efetividade e segurança em cada intervenção em saúde, podem-se calcular os custos e os benefícios de cada opção, verificar sua eficiência e transformar esses conhecimentos para que diretrizes clínicas possam ser implementadas. Todo [esse] processo, (...) requer pesquisas científicas rigorosas multidisciplinares, que incluem, além das disciplinas já citadas, a psicologia, a economia, a antropologia, a estatística, a sociologia etc, pois está em jogo a qualidade de vida e o bem comum. Para isso, é preciso não subestimar a importância do que não se conhece, conhecer e ampliar os horizontes sobre o que é relevante e não perder a noção do todo nem dos objetivos da ciência médica"1.
Em seguida, trago para reflexão um texto de Fernando Pessoa que ressalta a complexidade das questões humanas: "Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado. Cada um me contou a narrativa de porque tinham se zangado. Cada um disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e o outro, outra, ou um via um lado das coisas e o outro, um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico um do outro. Mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso a respeito desta dupla existência da verdade"2.
Teoricamente, a reflexão do Dr. Atallah converge com a de Fernando Pessoa e do que dizem os autores deste artigo de debate quando advogam contra o reducionismo científico na área da saúde. Atallah define a "saúde baseada em evidência" como apenas uma forma de diminuir as incertezas dos diagnósticos e intervenções, a favor dos pacientes. E, sem dúvida, têm sido importantes os trabalhos de revisão da literatura que buscam o aprimoramento dos diagnósticos e das intervenções na área da saúde, o que vem ao encontro dos anseios de todos que queremos uma resposta segura e plausível quando alguma enfermidade nos acomete. Portanto, desmerecer esse esforço está fora de qualquer cogitação. Sobre o assunto tecerei quatro considerações.
(1) A primeira é a favor de uma ciência que valoriza a pluralidade dos sujeitos e das racionalidades, o que não deve ser apenas interna ao campo científico, mas abarcar outros saberes provenientes do conhecimento informal expresso na linguagem e na experiência cotidiana. Tal necessidade se fundamenta no fato de que o observador e o observado são partes integrantes do mesmo processo de temporalidades e causalidades múltiplas e simultâneas. Assim, não podemos acolher evidências aportadas pelos estudos biomédicos e clínicos como verdades acabadas, numa área em que a integralidade do sujeito, a intersubjetividade nas relações, a intercessão entre corpo e mente, a força das representações e o papel de vários outros fatores como religião, crenças e valores precisam ser realmente considerados3.
(2) O segundo ponto, diz respeito a questões epistemológicas. As mudanças sociais ocorridas dos últimos 50 anos levaram a maioria dos campos científicos a se questionar sobre sua racionalidade unívoca, o que se expressa na proliferação de uma semântica superlativa incorporada ao dicionário dos profissionais e investigadores: integralidade, interdisciplinaridade, interface, multidisciplinaridade, interprofissionalidade, multiprofissionalidade, transdisciplinaridade, interrelações, interinstitucionalidade e muitos outros. Esse movimento da linguagem sugere uma inquietação e busca de análises e atuações mais abrangentes e interconectadas e reflete a impropriedade das propostas unidirecionais e unívocas4. Tais problemas vêm sendo tratados por muitos autores de renome internacional, dos quais cito, a título de exemplo, Ilya Prigogine, Henri Atlan e Edgar Morin.
Em "O fim da certeza" Prigonine5 fala da contemporânea transição da humanidade e da ciência. Nessa ciência em transição, a noção de complexidade conduz a uma nova racionalidade que supera os determinismos e a ideia de que o porvir já está ou pode ser definido. Prigogine mostra que a ideia de crise e incertezas passou a ser uma característica contemporânea nos estudos sobre os sistemas vivos. O destino dos viventes, lembra o autor, é feito por escolhas a partir de "bifurcações" (de possibilidades que se abrem) causadas por essas crises. A ultrapassagem da racionalidade clássica, diz Prigogine, aproxima a teoria da complexidade muito mais da China e da Índia do que dos tradicionais teóricos da ciência que insistem sobre regularidades, estabilidade, equilíbrio e dualismo entre o mundo dos números e o dos fenômenos. Na visão de Prigogine, por mais que se busque a redução das incertezas, elas persistem como uma condicionalidade de nosso tempo.
Atlan6 conseguiu comprovar que, em certas circunstâncias, é justamente o ruído (o caos, a desordem) que introduz uma novidade nos sistemas vivos, permitindo que eles se adaptem às mutáveis situações do ambiente e, nessa condição, possam melhorar seu desempenho e ganhar mais complexidade. Mas, o dinamismo da autoorganização não acontece sempre positivamente, pois o sistema vivo, em determinadas condições, pode involuir. Traduzindo este pensamento para a questão da saúde, uma evidência científica médica pode se beneficiar de interações positivas entre o profissional e o paciente, o ambiente familiar do doente ou da organização de uma unidade de saúde7. Mas também pode ser prejudicada por um contexto sociocultural e institucional adverso.
Edgard Morin8 também critica a visão cartesiana do mundo e propugna uma nova forma de olhar, pesquisar e atuar frente à realidade. O autor define o que chama de "inteligência cega": inteligência parcelada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva, reducionista, que destrói a complexidade do mundo em fragmentos distintos, fraciona os problemas, separa o que está unido, unidimensionaliza o multidimensional.
(3) O terceiro ponto a ser ressaltado é de ordem filosófica, fundamentada em autores que mostram ser impossível atingir a verdade absoluta, mesmo quando se faça uso de múltiplas abordagens teóricas e metodológicas. Isso porque nunca a compreensão dos fatos é originariamente e contextualmente total. Heidegger9 nos convida a exercitar incansavelmente a compreensão sobre as experiências e as vivências, dizendo que essa tarefa nos torna humanos. Esse autor ressalta que a facticidade da vida e do ser-nomundo não é uma "coisa em si mesma", e sim, um processo reflexivo de natureza parcial e inacabada, uma vez que ontologicamente os indivíduos se encontram reciprocamente eviscerados no velamento e no desvelamento dos acontecimentos. Assim o entendimento não se esgota nem na subjetividade nem na objetivação, uma vez que está envolto irremediavelmente na verdade e na não verdade. Isso acontece mesmo usando-se os procedimentos científicos mais exigentes. Heidegger chama atenção para o que, posteriormente, foi aprofundado por Gadamer10 sobre o "compreender" que é muito mais do que uma técnica: é o exercício humano de quem se coloca no lugar do outro.
Todos esses filósofos ressaltam também que qualquer processo de interação entre pessoas aponta tanto para o entendimento como para o desentendimento. Habermas11, em diálogo com Gadamer, sublinha que o velamento não ocorre apenas no ato inaugural da inter-relação humana, mas está também na intransparência da linguagem que vem das diferenças sociais e dos interesses de cada ator social em comunicação.
(4) Como consequência desse terceiro ponto, deve-se ressaltar as dificuldades que tais problemas filosóficos trazem para a aplicação dos métodos científicos. Os temas que tratam dos seres humanos - e de sua saúde - atravessam vários campos, cada vez mais especializados e cientes de suas descobertas, teorias, técnicas e propósitos específicos. Trabalhar com fragmentos desse conjunto de conhecimentos teóricos e metodológicos não é fácil. São ainda frágeis as estratégias para atingirmos o que Bertallanfy12 sugere: que abandonemos a ideia de disciplinas e foquemos em totalidades constituídas ao interior da organização dos fenômenos, para que a compreensão dos sistemas vivos e complexos seja alcançada sem reducionismo, sem transferência ingênua de conceitos, sem buscar semelhanças superficiais e transposição de modelos.
Referências
1. Atallah NA. Incerteza, a ciência e a evidência. Diagn. tratamento 2004;9(1):27-28.      [ Links ]
2. Pessoa F. Livro do Desassossego. Lisboa: Assírio & Alvim; 2006. (Coleção Obras de Fernando Pessoa)         [ Links ]
3. Minayo MCS. Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2001;6(1):7-19.         
4. Minayo MCS. Da inteligência parcial ao pensamento complexo: desafios da ciência e da sociedade contemporânea. Política & Sociedade 2011;10(19):41-56. 
5. Prigogine I. O fim da certeza. In: Mendes C, Larreta E, organizadores. Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2003. p. 47-68.       
6. Atlan H. Entre le cristal et la fumée. Essai sur l'organisation Du vivant. Paris: Seuil; 1979.        
7. Aleksandrowicz AMC. Participação e integração: o ponto de vista das teorias da auto-organização. Cien Saude Colet 2009;14(Supl.1):1609-1618.       
8. Morin E. A necessidade de um pensamento complexo. In: Mendes C, Larreta E, organizadores. Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2003. p. 69-78.  
9. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 1988.        
10. Gadamer HG. Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes; 1999.       
11. Habermas J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: Editora L± 1987. 
12. Bertalanfy L. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Editora Vozes; 1972.        

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