A busca da verdade no campo científico da saúde
Inicio
este debate com fragmentos de um editorial escrito em 2004 pelo Dr.
Atallah, Diretor do Centro Cochrane no Brasil: "reduzindo-se as
incertezas sobre a efetividade e segurança em cada intervenção em saúde,
podem-se calcular os custos e os benefícios de cada opção, verificar
sua eficiência e transformar esses conhecimentos para que diretrizes
clínicas possam ser implementadas. Todo [esse] processo, (...) requer
pesquisas científicas rigorosas multidisciplinares, que incluem, além
das disciplinas já citadas, a psicologia, a economia, a antropologia, a
estatística, a sociologia etc, pois está em jogo a qualidade de vida e o
bem comum. Para isso, é preciso não subestimar a importância do que não
se conhece, conhecer e ampliar os horizontes sobre o que é
relevante e não perder a noção do todo nem dos objetivos da ciência
médica"1.
Em
seguida, trago para reflexão um texto de Fernando Pessoa que ressalta a
complexidade das questões humanas: "Encontrei hoje em ruas,
separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado. Cada um me contou
a narrativa de porque tinham se zangado. Cada um disse a verdade. Cada
um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma
coisa e o outro, outra, ou um via um lado das coisas e o outro, um lado
diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado,
cada um as via com um critério idêntico um do outro. Mas cada um via
uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso a
respeito desta dupla existência da verdade"2.
Teoricamente,
a reflexão do Dr. Atallah converge com a de Fernando Pessoa e do que
dizem os autores deste artigo de debate quando advogam contra o
reducionismo científico na área da saúde. Atallah define a "saúde
baseada em evidência" como apenas uma forma de diminuir as incertezas
dos diagnósticos e intervenções, a favor dos pacientes. E, sem dúvida,
têm sido importantes os trabalhos de revisão da literatura que buscam o
aprimoramento dos diagnósticos e das intervenções na área da saúde, o
que vem ao encontro dos anseios de todos que queremos uma resposta
segura e plausível quando alguma enfermidade nos acomete. Portanto,
desmerecer esse esforço está fora de qualquer cogitação. Sobre o assunto
tecerei quatro
considerações.
(1)
A primeira é a favor de uma ciência que valoriza a pluralidade dos
sujeitos e das racionalidades, o que não deve ser apenas interna ao
campo científico, mas abarcar outros saberes provenientes do
conhecimento informal expresso na linguagem e na experiência cotidiana.
Tal necessidade se fundamenta no fato de que o observador e o observado
são partes integrantes do mesmo processo de temporalidades e
causalidades múltiplas e simultâneas. Assim, não podemos acolher
evidências aportadas pelos estudos biomédicos e clínicos como verdades
acabadas, numa área em que a integralidade do sujeito, a
intersubjetividade nas relações, a intercessão entre corpo e mente, a
força das representações e o papel de vários outros fatores como
religião, crenças e
valores precisam ser realmente considerados3.
(2)
O segundo ponto, diz respeito a questões epistemológicas. As mudanças
sociais ocorridas dos últimos 50 anos levaram a maioria dos campos
científicos a se questionar sobre sua racionalidade unívoca, o que se
expressa na proliferação de uma semântica superlativa incorporada ao
dicionário dos profissionais e investigadores: integralidade,
interdisciplinaridade, interface, multidisciplinaridade,
interprofissionalidade, multiprofissionalidade, transdisciplinaridade,
interrelações, interinstitucionalidade e muitos outros. Esse movimento
da linguagem sugere uma inquietação e busca de análises e atuações mais
abrangentes e interconectadas e reflete a impropriedade das propostas
unidirecionais e unívocas4. Tais problemas vêm sendo tratados por muitos autores de
renome internacional, dos quais cito, a título de exemplo, Ilya Prigogine, Henri Atlan e Edgar Morin.
Em "O fim da certeza" Prigonine5 fala
da contemporânea transição da humanidade e da ciência. Nessa ciência em
transição, a noção de complexidade conduz a uma nova racionalidade que
supera os determinismos e a ideia de que o porvir já está ou pode ser
definido. Prigogine mostra que a ideia de crise e incertezas passou a
ser uma característica contemporânea nos estudos sobre os sistemas
vivos. O destino dos viventes, lembra o autor, é feito por escolhas a
partir de "bifurcações" (de possibilidades que se abrem) causadas por
essas crises. A ultrapassagem da racionalidade clássica, diz Prigogine,
aproxima a teoria da complexidade muito mais da China e da Índia do que
dos tradicionais teóricos da ciência que insistem sobre
regularidades, estabilidade, equilíbrio e dualismo entre o mundo dos
números e o dos fenômenos. Na visão de Prigogine, por mais que se busque
a redução das incertezas, elas persistem como uma condicionalidade de
nosso tempo.
Atlan6 conseguiu
comprovar que, em certas circunstâncias, é justamente o ruído (o caos, a
desordem) que introduz uma novidade nos sistemas vivos, permitindo que
eles se adaptem às mutáveis situações do ambiente e, nessa condição,
possam melhorar seu desempenho e ganhar mais complexidade. Mas, o
dinamismo da autoorganização não acontece sempre positivamente, pois o
sistema vivo, em determinadas condições, pode involuir. Traduzindo este
pensamento para a questão da saúde, uma evidência científica médica pode
se beneficiar de interações positivas entre o profissional e o
paciente, o ambiente familiar do doente ou da organização de uma unidade
de saúde7. Mas também pode ser prejudicada por um contexto
sociocultural e institucional adverso.
Edgard Morin8 também
critica a visão cartesiana do mundo e propugna uma nova forma de olhar,
pesquisar e atuar frente à realidade. O autor define o que chama de
"inteligência cega": inteligência parcelada, compartimentalizada,
mecanicista, disjuntiva, reducionista, que destrói a complexidade do
mundo em fragmentos distintos, fraciona os problemas, separa o que está
unido, unidimensionaliza o multidimensional.
(3)
O terceiro ponto a ser ressaltado é de ordem filosófica, fundamentada
em autores que mostram ser impossível atingir a verdade absoluta, mesmo
quando se faça uso de múltiplas abordagens teóricas e metodológicas.
Isso porque nunca a compreensão dos fatos é originariamente e
contextualmente total. Heidegger9 nos convida a exercitar
incansavelmente a compreensão sobre as experiências e as vivências,
dizendo que essa tarefa nos torna humanos. Esse autor ressalta que a
facticidade da vida e do ser-nomundo não é uma "coisa em si mesma", e
sim, um processo reflexivo de natureza parcial e inacabada, uma vez que
ontologicamente os indivíduos se encontram reciprocamente eviscerados no
velamento e no desvelamento dos acontecimentos. Assim o entendimento
não se esgota
nem na subjetividade nem na objetivação, uma vez que está envolto
irremediavelmente na verdade e na não verdade. Isso acontece mesmo
usando-se os procedimentos científicos mais exigentes. Heidegger chama
atenção para o que, posteriormente, foi aprofundado por Gadamer10 sobre o "compreender" que é muito mais do que uma técnica: é o exercício humano de quem se coloca no lugar do outro.
Todos
esses filósofos ressaltam também que qualquer processo de interação
entre pessoas aponta tanto para o entendimento como para o
desentendimento. Habermas11, em diálogo com Gadamer, sublinha
que o velamento não ocorre apenas no ato inaugural da inter-relação
humana, mas está também na intransparência da linguagem que vem das
diferenças sociais e dos interesses de cada ator social em comunicação.
(4)
Como consequência desse terceiro ponto, deve-se ressaltar as
dificuldades que tais problemas filosóficos trazem para a aplicação dos
métodos científicos. Os temas que tratam dos seres humanos - e de sua
saúde - atravessam vários campos, cada vez mais especializados e cientes
de suas descobertas, teorias, técnicas e propósitos específicos.
Trabalhar com fragmentos desse conjunto de conhecimentos teóricos e
metodológicos não é fácil. São ainda frágeis as estratégias para
atingirmos o que Bertallanfy12 sugere: que abandonemos a
ideia de disciplinas e foquemos em totalidades constituídas ao interior
da organização dos fenômenos, para que a compreensão dos sistemas vivos e
complexos seja alcançada sem
reducionismo, sem transferência ingênua de conceitos, sem buscar
semelhanças superficiais e transposição de modelos.
Referências
1. Atallah NA. Incerteza, a ciência e a evidência. Diagn. tratamento 2004;9(1):27-28. [ Links ]
2. Pessoa F. Livro do Desassossego. Lisboa: Assírio & Alvim; 2006. (Coleção Obras de Fernando Pessoa) [ Links ]
3. Minayo MCS. Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2001;6(1):7-19.
4. Minayo MCS. Da inteligência parcial ao pensamento complexo: desafios da ciência e da sociedade contemporânea. Política & Sociedade 2011;10(19):41-56.
5. Prigogine I. O fim da certeza. In: Mendes C, Larreta E, organizadores. Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2003. p. 47-68.
6. Atlan H. Entre le cristal et la fumée. Essai sur l'organisation Du vivant. Paris: Seuil; 1979.
7. Aleksandrowicz AMC. Participação e integração: o ponto de vista das teorias da auto-organização. Cien Saude Colet 2009;14(Supl.1):1609-1618.
8. Morin E. A necessidade de um pensamento complexo. In: Mendes C, Larreta E, organizadores. Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2003. p. 69-78.
9. Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes; 1988.
10. Gadamer HG. Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes; 1999.
11. Habermas J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: Editora L± 1987.
12. Bertalanfy L. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Editora Vozes; 1972.