Onze mil docentes e 500 alunos
Assim é a Escola Médica de Harvard, onde saber a matéria é apenas um dos seis critérios para passar de ano
Antonio Bianco
Quando cheguei aqui, há cerca de 10 anos, já havia lecionado e coordenado cursos nas Faculdades de Medicina da Santa Casa de São Paulo e da USP durante pelo menos 15 anos. Mesmo assim, a experiência didática na Faculdade de Medicina Harvard surpreendeu.
Primeiro, porque ninguém é obrigado a dar aulas. Com cerca de 11 mil docentes para aproximadamente 500 alunos, a grande maioria dos docentes nunca dá aula, mesmo se quiser. Os docentes que procuram dar aula são geralmente aqueles que estão em processo de promoção, uma vez que tem se valorizado bastante a experiência didática nesse processo.
Para os docentes afiliados aos hospitais – como é o meu caso – existe uma motivação adicional: a monetária. Nós recebemos cerca de US$50/hora além do salário base normal. Não obstante, a decisão sobre a composição do corpo docente cabe aos coordenadores dos cursos, os quais, de uma forma geral, buscam os líderes em cada uma das áreas. Assim, dificilmente um docente ministra mais de uma ou duas aulas no mesmo curso.
O formato dos cursos varia muito, mas, de uma forma geral, as atividades começam às 8h da manhã com uma ou duas aulas magistrais para toda a turma. Essas aulas são como conferências em congressos, com gravação de áudio e vídeo, pois os alunos podem a qualquer momento visitar o site do curso na intranet da faculdade e assistir à aula novamente no computador. Freqüentemente os alunos batem palmas efusivamente no final das aulas. Em seguida, após um breve intervalo, os alunos se dividem em grupos de 12 para conversar e discutir durante uma hora e meia sobre a(s) aula(s) daquele dia, sempre em salas pequenas e sob a monitoração de um docente. A composição desses grupos é balanceada de acordo com sexo, raça e origem dos alunos. A orientação da faculdade é que os monitores falem o menos possível; devem fazer perguntas de tempos em tempos no sentido apenas de orientar a discussão e evitar o caos ou perda de tempo.
O tempo é curto e insuficiente para cobrir toda a matéria. O curso de fisiologia humana (excluindo-se neurofisiologia), por exemplo, é dado em apenas seis semanas. Em função disso, os alunos têm o direito de levar a discussão para qualquer direção, mesmo que não seja a direção ideal, sem que o monitor possa interceder. Todos se sentam ao redor de uma mesa em salas equipadas com um computador, teclado e mouse sem fio, e um monitor grande de plasma pendurado na parede. Uma vez que os professores não podem esclarecer dúvidas, o Google é a ferramenta mais importante nesses seminários. Qualquer dúvida, sobre qualquer assunto, busca-se no Google. De vez em quando esses seminários são visitados por especialistas em educação médica que ficam sentados na sala sem falar nada, só observando e tomando notas; eu os chamo carinhosamente de “psicanalistas”. Uma vez, ao final de um seminário, um “psicanalista” me deu os parabéns, pois ele anotou que eu havia falado apenas cinco vezes durante todo o seminário! Para quem me conhece, sabe que isso é um feito. A maior parte das tardes é livre, para que os alunos estudem ou tenham atividades em laboratórios, ambulatórios ou enfermarias.
A avaliação dos alunos é coisa do outro mundo. Seis critérios são levados em consideração: presença, pontualidade, apresentação, relacionamento com os colegas, iniciativa para falar e liderar; e, finalmente, conhecimento específico sobre a matéria ministrada. Todos esses critérios têm o mesmo peso no cálculo da nota final. Assim sendo, ninguém falta à aula (mesmo porque os alunos estão pagando cerca de US$50 mil por ano), os rapazes freqüentemente usam gravata e as discussões são muito produtivas e cordiais. Nos cursos mais longos existe uma prova no meio do curso e uma prova final; trabalhos escritos ou apresentações orais também são freqüentemente utilizados. Nunca vi ninguém tirar nota baixa ou repetir o curso. Isso porque os alunos são muito esforçados e, acima de tudo, é obrigação do professor identificar precocemente alunos que não estejam indo bem. Esses alunos então recebem aulas de reforço (à tarde) e apoio pedagógico para que possam alcançar o desempenho do resto da turma. No final do curso, utilizando-se da intranet da Faculdade, os professores escrevem uma carta para cada aluno dizendo quais seus pontos fortes e quais os pontos que devem melhorar. Essa carta fica incorporada ao histórico escolar dos alunos. Ao mesmo tempo, os alunos individualmente fazem uma avaliação dos professores, a qual é enviada aos coordenadores dos cursos e aos professores.
O que fica claro é que a filosofia da faculdade é formar alunos com um conhecimento geral - até certo ponto superficial - de medicina, mas que se comportem como ótimos oradores e tenham o potencial para se tornarem futuros líderes nas suas respectivas áreas de especialização. Aliás, essa filosofia é marca registrada do Harvard College e naturalmente estende-se também as outras escolas de Harvard, fazendo com que, por sua postura e comportamento, ex-alunos de Harvard sejam facilmente identificados em círculos acadêmicos e profissionais. O interessante é que essa orientação contrasta com a filosofia de outras boas escolas americanas, e também de escolas médicas brasileiras, as quais ensinam aos alunos que o caminho do sucesso acadêmico é o conhecimento profundo dos fenômenos biológicos e médicos. Apesar disso, o meio acadêmico de Boston é bastante heterogêneo e aberto o suficiente para permitir que inúmeros médicos formados em outras faculdades, inclusive brasileiras, aqui obtenham grande sucesso profissional, e eventualmente sejam respeitados pelos “líderes” locais.
Antonio Bianco paulistano, médico pela Santa Casa de São Paulo e doutor em fisiologia humana pela Universidade de São Paulo (USP), onde foi professor por 15 anos. Seu laboratório fica na seção de tireóide do Brigham and Women's Hospital em Boston, da qual é chefe e professor associado de medicina na Universidade Harvard.
Fonte: Agência FAPESP
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