É NORMAL SOFRER PARA SE TORNAR MÉDICO?
Você – docente - sofreu? Muito?
Pensou que não iria suportar?
Que iria largar o curso?
E agora?
Pensa que tem que ser assim mesmo?
Se você conseguiu, por que os alunos de agora não conseguiriam?
Ou pensa que pode ser de outro jeito?
QUER DISCUTIR SOBRE ESSAS QUESTÕES?
Participe da web-oficina – 26 março 2018 13 – 15:30h
Organização:
- Ieda Aleluia (Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e Universidade do Estado da Bahia-UNEB),
- Paulo Marcondes (Universidade Federal de Santa Catarina, campus Araranguá),
- Rosana Alves (Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória),
- Sergio Zaidhaft (Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Estácio de Sá)
Apoio: Instituto Faimer Brasil
INSCRIÇÕES:
TEXTO DE REFERÊNCIA DA WEB-OFICINA
NÃO É NORMAL
Burnout
Todos sabem, né? Funções em si mesmas com uma carga de
exigência e stress grandes, como jornalistas fechando uma edição de jornal,
bombeiros, policiais, profissionais da saúde em emergência e, no Brasil, mais
do que tudo, professores de ensino fundamental que dão aula em zonas de
violência.
Em algum momento, as forças se esgotam, aparece algum sintoma
físico ou mental, pede-se licença, outra licença, volta-se ao trabalho
desanimado até passar a crer que escolheu a profissão errada, que não está
dando certo e nunca vai dar certo em nada, e se deprime com maior ou menor
gravidade.
Os vídeos do #naoenormal, os depoimentos de alunos de
Medicina do Brasil (do mundo?) tratam deste fenômeno. Nome novo para coisas
antigas? Entidade separada de depressão? Não importa, importa que o nome pegou
e talvez possa ser um bom gancho para início de conversa.
Por que isto num curso de Medicina? (É o que conheço. Em todos os outros da saúde
também?)
“O curso é pesado mesmo”, “ser médico é pesado mesmo” e
frases semelhantes é o que todos sempre ouvimos e dizemos. Ok. Por que será? A
atividade profissional fica para outra hora. Já quanto ao curso algumas
hipóteses:
a.
“A
quantidade de matéria”. Uma antiga diretora da Medicina-UFRJ pesquisou com
todos os coordenadores de disciplinas quais conteúdos gostariam de dar e em
quanto tempo. Somou tudo e o resultado foi que o curso duraria 23 anos! Contei
isto a uma turma de alunos, e um bem sagaz comentou: “agora entendi tudo.
Enfiaram a matéria de 23 anos em 6”. Genial, né?
Primeiro argumento: em parte, a matéria é extensa mesmo, mas o que é prioritário
se ensinar? Qual o tempo reservado para estudo? O que vai se avaliar? Eu, por
exemplo, vou dar um curso “Bob Dylan: vida e obra” (1 e 2). O que vou esperar
que os alunos aprendam? As várias fases do artista, suas principais temáticas,
suas influências, a quem influenciou etc., ou, como muitos professores fazem,
qual o nome do baterista que tocou numa única faixa de um único disco, das
dezenas que ele gravou? Resumindo: ensina-se o que o aluno precisa saber e/ou onde
saber e como buscar ou o que o professor quer ensinar?
Segundo argumento: estudar/aprender é um prazer ou um encargo? Alunos
queixam-se seguidamente da “obrigação de estudar”. Claro que é um encargo
estudar para fazer prova, ter que aprender coisas que aparentemente não fazem
sentido naquele momento, mas será que tem de ser só assim? Claro que não dá
para um curso de Medicina ser uma Summerhill (busquem no Google) ou seguir as
ideias do José Pacheco (Tedtalk no youtube), ok, mas será que tem de ser só o
oposto disso e zero de prazer, zero de fascínio ao se conseguir ouvir uma 4ª
bulha ou um sopro, diferenciar um som timpânico de um maciço, assim por diante?
Caramba! Tantas descobertas que se pode fazer ao se examinar o corpo e a mente
de um paciente e isso virar um encargo. Isso não faz sentido.
Resumindo (com perdão pelo chavão): aprendizagem
significativa e –sem jargão algum – com prazer.
Desafio: como equilibrar estes lados da gangorra que só pesa para um lado? Que
fazer para que os encargos sejam justos e razoáveis? Que atividades e disciplinas (grifo proposital, não
somente as atividades fora do mainstream)
desenvolver para equilibrar a gangorra?
b.
“Pra
ser médico tem que pendurar os sentimentos num cabide”; “não vá se envolver com
paciente. Deste jeito você vai sofrer tanto que vai acabar largando a
Medicina”.
Um antigo autor – Goffman- escreveu sobre o que ele denominou
instituições totais. Seriam aquelas em que o indivíduo ao nelas entrar perderia
sua identidade original e passaria a ter uma nova. Ex: manicômios, prisões e
conventos (título de um livro seu). Escolas de Medicina também?
Ora, os alunos passaram por um vestibular, na verdade em sua
maioria 2, 3 ou 4 anos de vestibular em que se matam de estudar, abrem mão de
grande parte dos prazeres da vida de um jovem em nome do seu sonho e ainda
enfrentam a crítica de muitos que os rodeiam pela escolha tão difícil que
fizeram para entrar numa faculdade. Pois bem: será que estes jovens se
surpreendem com a “quantidade de matéria” da faculdade? Será que é isso? A
decepção pela quantidade de matéria e ter que abrir mão de prazeres sociais?
Mas não ficaram um tempão assim antes? Não sei, mas isto não me convence.
Primeiro argumento: todos foram excelentes alunos em suas escolas de origem. Esta
era sua identidade prévia: melhores alunos. Um da UFRJ recentemente me contou
que veio do interior do Ceará, uma cidade de 20000 habitantes, primeiro membro
de sua família de pequenos agricultores a sair de sua cidade, foi até recebido
pelo prefeito antes de vir para o Rio. Tirou nota baixa em sua primeira prova,
quando estava ainda se aclimatando à cidade grande (moradia, preços, violência,
transporte, enfim, tudo) e, a partir daí, emburacou e passou a só tirar nota
baixa, foi reprovado várias vezes em várias matérias, acha que é burro, esconde
as reprovações dos pais, acha que os colegas da nova turma –por ser repetente-
já o olham de um jeito estranho e o que vai dizer ao prefeito, daí por diante.
Resumindo: entrada no curso como uma crise de identidade.
Universidade (ou faculdade mesmo) e não mais colégio, vida adulta, melhores
alunos deixando de sê-lo, expectativa não realizada, assim por diante. E ainda
as outras crises: paciente que morre, internato e escolha de especialidade
entre outras.
Segundo argumento: mais do que uma crise de identidade haveria sim a
necessidade de se criar uma nova. Baseada em que? Um autor –Jean Clavreul-
postula no livro “A ordem médica” que não há relação médico-paciente e sim uma
relação instituição médica-doença. Sou professor de uma disciplina cujo objeto
é a relação médico-paciente, ou seja, quase rasguei o livro, xinguei o autor de
tudo que é nome, mas ele tem razão (em parte, pelo menos). Seguindo Foucault (o
objeto da Medicina é a lesão, por ser nela e por ela que se constitui como um
conhecimento científico), Clavreul diz que, para ser “científica”, a Medicina
exclui a subjetividade (ele denomina o processo de dessubjetivação) daqueles
que compõem a relação médico-paciente.
Ou seja, não se envolver, pendurar os sentimentos etc. fala
disso: para ser médico (científico) não se pode ter sentimentos, subjetividade.
Penso que aqui reside o ponto central. Não bastasse o sofrimento pela
“quantidade de matéria”, a necessidade de se manter num lugar ideal de melhor
aluno, as tensões resultantes do contato com pacientes mais ou menos graves
numa idade em que a maioria se considera imortal e quer curtir a vida, os
alunos ainda têm que aprender que devem -o termo que me vem é este, então vai
este mesmo- embrutecer! E que isto é imperioso para ser um bom médico.
Mais ainda: este embrutecimento, este não se importar com
sentimentos dos pacientes e os próprios acaba sendo entendido (transmitido
pelos professores. Nós!) como uma nova identidade que deve ser adquirida no seu
treinamento e na própria vida de relação dentro e fora da faculdade, constituindo
quase uma nova família (a associação se impõe. Se é matando uma característica
de vida, não posso deixar de dizer: mafiosa). Compartilhar dúvidas,
inquietações com colegas que poderão ser seus concorrentes? Tirar dúvidas em
aula e todos perceberem que é mais lento que os outros? De jeito nenhum!
Imagina o que vão pensar de mim! Sofrer com algum relato de paciente? Ter
vontade de chorar? Aí mesmo que vão dizer que não levo jeito pra ser médico. Em
boca fechada não entra mosca.
Resumindo: resultado deste caldo só pode ser burnout.
Desafio: canais para expressar/compartilhar sentimentos em
programas de mentoria e –sim!- em disciplinas obrigatórias; disciplinas
(todas!) abertas para o aluno pensar o próprio processo de formação; atividades
para fortalecer grupo, atenuar concorrência, estimular amizade, lealdade, essas
coisas, carga horária reservada para viver e, last but not least, ARTE.
Penso que setores para acompanhamento psicológico dos alunos
não são malvindos, pelo contrário, até promovi um convênio da Faculdade com uma
Sociedade de Psicanálise (alguns analistas vão ao Fundão –onde fica a
faculdade- para atender de graça alunos que não têm tempo para se deslocar para
a Zona Sul, onde ficam seus consultórios), mas não creio que seja esta a prioridade
e sim o que escrevi acima. Meu receio é que priorizar atendimento psicológico
e/ou psiquiátrico não mexa no cerne mesmo do problema.
Já ouço e me ouço: vá convencer os professores. Melhor
dizendo: por que ensinar é um encargo e não um prazer? Aí seriam mais 4
páginas. Chega.
PS: 2 filmes. “Whiplash”- Em busca da perfeição. Damien Chazelle, diretor.
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