Blog do Curso de Medicina da Universidade Estadual de Maringá para a discussão de temas de Educação Médica, Educação das Profissões da Saúde e áreas correlatas.
Blog of University of Maringá Medical School for the discussion of issues of Medical Education, Health Professions Education and related areas.
O programa Mais Médicos foi uma resposta ao movimento social dos
últimos meses. Há nele propostas que merecem apoio e outras
inadmissíveis. A forma atabalhoada de encaminhamento gerou acirramento e
cizânia. O movimento médico rejeitou o projeto em bloco e ainda se
retirou dos espaços institucionais de negociação. Entretanto, escolas
médicas, especialistas e profissionais continuaram criticando e fazendo
sugestões de mudanças. Espera-se que governo, parlamentares,
universidades, tenham capacidade de negociação para além de seus
interesses particulares.
Merece apoio a contratação de 11 mil médicos para a rede de atenção
básica (primária). A extensão da atenção primária para mais de 90% dos
brasileiros nunca foi assumida como prioridade. Vários políticos
desistiram da Saúde da Família; haviam se encantado com a substituição
desse modelo pela demagogia das Unidades de Pronto Atendimento.
Entretanto, não merece apoio a forma de contratação indicada pelo
governo. Trata-se de contrato precário e as condições de recrutamento
parecem inventadas para espantar os eventuais candidatos. Trata-se de um
posto provisório, três anos, prorrogáveis por mais três. O que
significa que os médicos deverão deixar todas suas atividades para algo
que terminará em breve. O governo federal dá um péssimo exemplo ao
insistir em recrutar pessoal de maneira canhestra. As contratações
precárias e a gestão do trabalho são um dos principais problemas do SUS.
Por que não propor uma carreira para a atenção básica? Uma carreira do
SUS, com cofinanciamento da União, Estados e municípios. Fazer concursos
por Estado da federação. Já é hora de criar uma política de pessoal
decente para o SUS. Temos recursos e proposições factíveis que combinam a
cobrança de responsabilidade sanitária com autonomia para médicos e
outros profissionais. Há um círculo vicioso em que médicos não se
obrigam a obedecer ao contrato e o governo não se responsabiliza pela
degradação da clínica nos serviços públicos. A carreira deveria pôr fim a
esse pacto perverso.
A formação dos médicos deverá reorganizar-se conforme diretrizes já
aprovadas pela Associação Brasileira das Escolas Médicas (Abem), que
objetiva formar médicos em clínica e em saúde pública, com estágios
práticos em todo o sistema, inclusive na atenção básica. Entretanto, não
tinha, de fato, cabimento estender-se o curso de medicina para oito
anos. A obrigatoriedade do primeiro ano de residência, em todas as
especialidades, em unidades básicas de saúde já vinha sendo sugerida
havia anos. Óbvio que com supervisão de professores das universidades
responsáveis pelos cursos de residência. Com essa medida, se garantiriam
7 mil residentes na atenção básica. Vale lembrar que mais de 90% das
bolsas de residentes são de origem pública.
Merece ainda apoio a ampliação de 10 mil vagas para residência.
Particularmente para médicos de saúde da família e comunidade
(generalistas, especializados em atenção primária) e outros
especialistas em falta no SUS: anestesistas, psiquiatras, oncologistas,
pediatras, entre outros.
Entretanto, não tem cabimento a proposta de mais 10 mil vagas/ano
para graduação médica. De fato, necessitamos de mais médicos e mais
vagas nas faculdades de medicina, porém entre 3 mil e 4 mil/ano. E,
nesse caso, priorizar esse crescimento por meio de faculdades públicas.
Não há porque estimular a abertura de escolas privadas.
Resta a intenção governamental de “importar” médicos estrangeiros no
caso de os brasileiros não preencherem a cota necessária. Caso se
adotasse a proposta de realizar-se o primeiro ano de residência, em
todas as especialidades, na atenção primária, seriam 7 mil médicos a
mais na rede básica. Sendo adotado um modelo decente de contratação, com
certeza se inscreveriam mais candidatos que os 4 mil inscritos no Mais
Médicos. Nesse caso, a necessidade imediata de estrangeiros seria
reduzida. Falta também aperfeiçoar e desburocratizar o sistema de
revalidação de diplomas. Em situações extremas o governo poderá valer-se
de programas emergenciais, sempre como ultimo recurso.
O Brasil escolheu o direito universal à saúde. Trata-se de um
princípio ético que se transformou em lei, a qual responsabilizou o
Estado e a sociedade pela transformação desse valor abstrato em
realidade. Indicou-se ainda um modelo organizacional para dar concretude
a essa aspiração: o SUS.
Falta, todavia, enfrentar o entrave do subfinanciamento. Calcula-se
que seria necessário dobrar os gastos com o SUS – de 3,6% do PIB,
chegar-se a mais de 7%. Eliminando o incentivo fiscal e os repasses do
orçamento público ao setor privado, cálculos indicam que seriam
injetados mais de R$ 20 bilhões no SUS ao ano.
Falta realizarmos uma radical reforma do modelo de assistência médica
e à saúde. O SUS inspirou-se na tradição dos Sistemas Públicos e
Universais de Saúde que surgiram na segunda metade do século 20 e há
indiscutíveis evidências sobre a superioridade dessas políticas. O SUS
está fragmentado, com políticas e programas diferentes conforme o
governo. O SUS está dividido entre atenção primária, hospitais,
ambulatórios, urgência, saúde mental, etc. O SUS está estraçalhado entre
serviços públicos, organizações sociais, fundações, entidades
filantrópicas, uma babel em que não há solução gerencial mágica. O SUS
sofre com as mesmas mazelas do Estado brasileiro: ineficiência,
privatização de interesses, clientelismo, burocratização. Precisamos,
urgente, de uma reforma do modelo de gestão que diminua o poder
discricionário do Poder Executivo e assegure sustentabilidade e
continuidade ao SUS.
O Brasil precisa de Mais SUS.
* Gastão Wagner de Sousa Campos, médico sanitarista, é Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp.
You are about to go under the
knife. Perhaps you are having a routine gallbladder removal, or maybe it
is a more complex surgical procedure, like the removal of a tumor. As
the anesthesiologist moves the gas mask toward your face, you glance at
the surgeon and wonder: How well prepared is the person wielding the
scalpel? Can I be confident that this young surgeon, whose hands will
cradle my life, really knows what she is doing?
Sadly, there is increasing evidence that the answer may be no. A
survey of surgical-fellowship directors, the results of which were
published in the September 2013 issue of Annals of Surgery,
disclosed many serious doubts. Fifty-six percent of respondents say
their new fellows—licensed physicians who have completed four years of
medical school and five years of residency—cannot suture, 38 percent say
they lack a sense of patient ownership, and 66 percent say their new
fellows cannot operate for more than 30 minutes without supervision.
It would be comforting to suppose that these problems are confined to
surgical education. Yet in fact they are merely symptomatic of more
widespread, even endemic flaws in our current medical-education system.
To fix these problems and ensure good medical care for our children and
grandchildren, we need to peer beyond superficial symptoms and probe the
depths of the underlying disorder. Only once we have the full diagnosis
in hand can we prescribe the requisite therapy.
One flaw in contemporary medical education is the growing tendency to
treat learners as though they were a hazardous material from which
patients require protection. Many medical students gain remarkably
little practical, hands-on experience in caring for patients—the very
thing that future physicians need most. Even the very brightest and most
talented and enthusiastic people cannot get better at something they
never do.
Yet we must avoid supposing that the primary disorder of medical
education is merely technical and not ethical. What medical education
most lacks today is not funding, technology, or methodological
sophistication. What medical education most lacks today is heart. When
we educate future physicians, we are not just cramming brains full of
facts or embedding new skills in motor memory. We are shaping human
character, and the shaping of character takes place best when human
beings have opportunities to interact meaningfully with one another.
Yet most American medical schools are busily reducing the number of
student-teacher contact hours. A sea change is under way toward
independent learning. Lecture hours are being reduced, students are
attending a shrinking percentage of classes, and face-to-face
interaction is being replaced by electronic learning techniques. The
members of the medical-school faculty, once the very model physicians
whom students and residents sought to become, are now being relegated to
the role of "content deliverers." Such approaches may permit students
to recall what was said but inevitably dull their perception of the
curiosity and passion behind it.
Another important factor has been the shift toward competency-based
education. At first glance, this seems just the right thing—learners
will be taught and then assessed not only on what they know, but mostly
on what they can do. Yet at its core, competency-based education means
setting the same bar for every learner and doing so at the same
relatively low level. Once the educational focus is on competency, the
attainment of excellence moves to the back burner. Furthermore, by
expecting every student and resident to focus on the same competencies,
we tend to overlook each learner's distinctive interests, aptitudes, and
experiences, which often end up suffering from inattention.
Medical education increasingly resembles a form of mass production,
in which homogenization is the order of the day. The more each student
looks like every other, we suppose, the higher the quality of medical
education. But in the real world of medical practice, education, and
research, the key to genuine excellence is less conformity than
diversity, improvisation, and innovation. The very best physicians are
not clones. Far from it, each really good physician has a distinctive
style.
How have flawed educational approaches become so prevalent? One
factor is cost cutting. Despite the fact that medical education has
never been more expensive, medical schools and residency programs are
trying to do more with less. Another factor is the desire of some
leaders to make a distinctive mark, which generally means replacing the
old with the new. When revolution becomes imperative, tried-and-true
methods like the lecture and apprenticeship inevitably fall into
disrepute.
How can we cure what ails medical
education? For one thing, we need to re-establish excellence as its true
goal. Second, we need to recognize that excellence means encouraging
diversity among both learners and educators. Third, we need to reaffirm
that the pursuit of excellence is hard work, requiring truly intense
dedication over a long period of time. Finally, we need to restore to
the core of medical education a focus on human relationships.
From the very first days of medical school, learners should spend
substantial portions of time in the company of faculty members and
patients. They should see how their teachers interact with patients,
practice interacting with patients under supervision, and eventually
begin caring for patients on their own, with faculty members as backup.
The purpose is not just to log hours or fill out forms, but also to
uncover what makes caring for patients truly challenging and inspiring.
In most cases, only a good educator can really make this happen.
In the words of one of my students, "It is amazing the lengths to
which faculty members are not only willing but eager to go when a
medical student expresses interest in learning." The real driver of
medical education should not be a minimum score on an exam or a long
checklist of procedures and experiences. Those are all just means, not
ends. The real driver of medical education should be the shared
curiosity and the commitment of learners and educators to the welfare of
patients.
Sir William Osler, a Canadian but perhaps the most admired physician
in U.S. history, knew this well. He once said that when medical
education is done right, the learner "begins with the patient, continues
with the patient, and ends with the patient." Everything else,
including the whole medical school, he said, is but a means to that end.
In order to secure great medical care in the future, we need to promote
great medical education today, and this requires that we renew our
focus on building meaningful relationships between three essential
people: the learner, the educator, and the patient.
Richard B. Gunderman is a professor in the schools of medicine, liberal arts, and philanthropy at Indiana University.
iPad – useful educational tool to all medical trainees?
Summary:
A recent study found that the iPad was not
considered a high valued educational tool among medical and surgical
trainee physicians.
Article:
A recent study, by Skomorowski et al (2013),
discovered that Apple’s tablet, the iPad, is perhaps not as useful to
medical and surgical trainee physicians. The study looks at trainee
physician’s perception on the usefulness of the iPad in terms of
clinical and educational utility. Additionally it looked at the
different perception of value between medicine-based and surgical-based
trainees.
Trainees at the Riverside Methodist Hospital, Columbus, USA, were issued
with a 16GB iPad 2 with Wifi and was instructed to “use their iPad both
in and outside the hospital as they saw fit throughout the year”. At
the end of the academic year, 86% of the trainees took part in the
survey.
The results of the survey showed that only 18.1% of medicine-based
trainees used their iPad on rounds compared to 6.7% of surgical
trainees. Only slightly more reported that they usually consulted their
tablets between rounds to review lab results, progress notes, images and
other patient information. (The researchers counted OB/GYN residents as
having a surgical focus).
With regards to writing progress notes a minimal 3.3% of surgical
trainees said that using iPad in the hospital increased their efficiency
in writing progress notes while the survey showed this percentage to be
higher among medical trainees at 9.7%.
Perhaps the greatest difference demonstrated by the survey was the
usefulness of the iPad as a “valuable educational tool” with 41.7% of
medical trainees thought it was compared to only 6.7% of surgical
trainees. “Though not addressed by this study, disparity may exist due
to differences in clinical rounding styles as well as the working life
of medical vs. procedural-based residents with different emphasis on
data use and interpretation,” the researchers wrote.
Revalida aprova na segunda etapa 109 dos 111 inscritos, informa Inep
Exame permite que médicos formados em outros países atuem no Brasil
Segundo Inep, 50 dos aprovados são brasileiros formados no exterior
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)
divulgou nesta segunda-feira (23/12) a lista dos 109 aprovados da segunda
etapa do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida),
que permite ao médico formado no exterior tornar válido o diploma para
exercício da profissão no Brasil (clique aqui para saber se foi aprovado).
Segundo o Inep, a aprovação da segunda etapa corresponde a 94,78% dos
inscritos nas provas realizadas neste mês e mediram habilidades
clínicas. Em 2013, segundo o instituto, o exame teve a adesão de 37
universidades públicas.
Ainda de acordo com o Inep, dos 109 médicos aprovados na segunda fase
do exame, 50 são brasileiros. Outros 22 profissionais aprovados são
bolivianos e seis, colombianos. Os demais são de outros países.
O Revalida é aplicado anualmente, desde 2011. O exame é orientado pela
Matriz de Correspondência Curricular para Fins de Revalidação de
Diplomas de Médico Expedidos por Universidades Estrangeiras.
Segundo o Inep, o Revalida foi criado como "uma estratégia de
unificação nacional do processo e é referência de utilização de
parâmetros igualitários da formação médica no país, em consonância com
as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Medicina”.
Medical students, spirituality and religiosity-results from the multicenter study SBRAME
Giancarlo Lucchetti, Leandro Romani de Oliveira, Harold G Koenig, José Roberto Leite and Alessandra LG Lucchetti
BMC Medical Education 2013, 13:162
doi:10.1186/1472-6920-13-162
Abstract (provisional)
Background
To evaluate the relationship between spirituality/religiosity (S/R) and the attitudes,
beliefs and experiences of medical students in Brazil with respect to S/R in their
undergraduate training and clinical practice.
Methods
SBRAME (Spirituality and Brazilian Medical Education) is a multicenter study involving
12 Brazilian medical schools with 5950 medical students (MS). Participants completed
a questionnaire that collected information on socio-demographic data and S/R in their
undergraduate training and practice.
Results
Of all MS, 3630 participated in the survey (61.0%). The sample was 53.8% women and
the mean age was 22.5 years. The majority of MS believed that spirituality has an
impact on patients' health (71.2%) and that this impact was positive (68.2%). The
majority also wanted to address S/R in their clinical practice (58.0%) and considered
it relevant (75.3%), although nearly one-half (48.7%) felt unprepared to do so. Concerning
their training, most MS reported that they had never participated in a "spirituality
and health" activity (81.0%) and that their medical instructors had never or rarely
addressed this issue (78.3%). The majority also believed that they should be prepared
to address spiritual issues related to the health of their patients (61.6%) and that
this content should be included in the medical curriculum (62.6%).
Conclusion
There is a large gap between MS attitudes and expectations and the S/R training that
they are receiving during their undergraduate training. The majority of MS surveyed
believe that patients should have their beliefs addressed and that these beliefs could
have important effects on their health and the doctor-patient relationship. These
results should stimulate discussion about the place that S/R training should have
in the medical curriculum.
A história do rapaz que recebe do SUS o
tratamento mais caro do mundo revela um dos maiores desafios do Brasil:
resolver o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à
saúde
Cristiane Segatto
Capítulo 1
Como Rafael Favaro ganhou uma briga jurídica e um tratamento de primeiro mundo
Quem acompanha o tratamento médico de Rafael Notarangeli Fávaro – um
rapaz de 29 anos formado em gestão ambiental – se convence de que o
sistema público de saúde no Brasil é um dos melhores do mundo. Sábado
sim, sábado não, ele entra sozinho no próprio carro, um Meriva
financiado, e dirige os 84 quilômetros que separam São José dos Campos
de São Paulo. Sente-se tão bem-disposto que nem sequer precisa de
acompanhante. Étendido com presteza e simpatia quando chega ao
Hospital Sírio-Libanês, a instituição de elite famosa por cuidar da
saúde das celebridades e dos figurões da República. No 2o andar, Rafael é
instalado numa confortável poltrona de couro para receber, numa veia do
braço direito, uma dose do tratamento mais caro do mundo. De acordo com
um ranking elaborado pela revista americana Forbes, nenhum
tratamento clínico é tão dispendioso quanto usar o medicamento Soliris
(eculizumab) para amenizar as complicações de uma forma raríssima de
anemia, denominada hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), causadora
de vários problemas que podem levar à morte. O Soliris ainda não é
vendido no Brasil. Importado, vem em pequenos frascos.
Cada vidrinho de 30 mililitros custa mais de R$ 11 mil. Em menos de
meia hora, a corrente sanguínea de Rafael absorve o conteúdo de três
frascos, diluído numa bolsa de soro. São R$ 35 mil a cada 15 dias. Cerca
de R$ 70 mil por mês. Mais de R$ 800 mil por ano.
O remédio não cura, mas melhora a qualidade de vida. Se Rafael quiser
continuar levando uma rotina normal, precisará receber o Soliris para
sempre. Vida normal, no caso dele, significa acordar cedo e trabalhar em
horário comercial numa empresa que faz geoprocessamento de imagens de
satélite. No final do dia, voltar para casa a tempo de jantar com a
mulher, Fabiana, no pequeno apartamento de São José dos Campos
emprestado ao casal pelos pais dele. Rafael não precisa se preocupar com
o aluguel. Nem com as despesas de seu tratamento. Em cinco anos, os
gastos (apenas com o medicamento) ultrapassarão os R$ 4 milhões. Quem
paga é o SUS, o Sistema Único de Saúde. Religiosamente. Sem atraso. Como
ele conseguiu isso tudo? Como milhares de outros doentes em todo o
Brasil, Rafael entrou na Justiça com uma ação contra o governo estadual.
Qualquer um que estivesse na pele dele provavelmente faria o mesmo. Aos
23 anos, recém-casado, ele sofreu uma trombose (formação de coágulos
nos vasos sanguíneos que pode provocar infarto, AVC, insuficiência renal
ou embolia pulmonar). Poderia ter morrido. Aquele foi apenas o evento
mais grave de uma lista de problemas de saúde que o impossibilitavam de
trabalhar e viver como um jovem normal. Enfrentou constantes e fortes
dores abdominais, uma cirurgia para extrair 21 centímetros do intestino
que haviam necrosado, anemia, sucessivas transfusões de sangue. Todo o
sofrimento era decorrente da já citada HPN. De uma forma simplificada,
pode-se dizer que a HPN é uma anemia crônica causada pela decomposição
excessivamente rápida dos glóbulos vermelhos.
Quando recebeu o diagnóstico, Rafael descobriu que pacientes como ele
podem ser submetidos a um transplante de medula. É uma alternativa muito
mais barata (custa cerca de R$ 50 mil ao SUS) e a única capaz de curar.
Apesar disso, nem sequer procurou um doador. Como o tratamento mais
caro do mundo estava ao alcance das mãos, considerou que valia a pena
optar pela nova droga e evitar os riscos da solução tradicional. O
transplante cura metade das pessoas que têm HPN. Mas 30% podem morrer ou
ter alguma complicação grave. O Soliris não cura, mas reduz a
destruição dos glóbulos vermelhos e os sintomas da doença. Ainda assim,
não elimina totalmente o risco de trombose. É por isso que Rafael também
precisa tomar anticoagulante para sempre.
Se tivesse de pagar o tratamento do próprio bolso, importar o remédio
estaria fora de cogitação. Faria o transplante pelo SUS e teria fé na
cura. Várias pessoas, no entanto, o incentivaram a tentar conseguir o
Soliris pela via judicial. Um médico de São José dos Campos o encaminhou
à capital para ser atendido de graça pelo hematologista Celso Arrais
Rodrigues, do Sírio-Libanês. Rodrigues explicou como o Soliris
funcionava e indicou uma advogada que entrara com ações contra a
Secretaria Estadual de Saúde em nome de outros pacientes. Rodrigues
afirma que decidiu cuidar de Rafael e de outros pacientes de HPN sem
cobrar nada, por mero interesse científico. Graças a Rodrigues, eles
foram incluídos no programa de filantropia do Sírio-Libanês e, por isso,
o tratamento inteiro é feito no hospital cinco estrelas. Para o Sírio, o
atendimento de doentes como Rafael é vantajoso, porque garante isenção
de alguns impostos federais. No final das contas, quem paga o tratamento
do rapaz num dos melhores hospitais do Brasil é o contribuinte.
O hematologista Rodrigues diz não ter vínculos com a fabricante do
remédio, a americana Alexion. Mas é pago por ela para dar aulas sobre
HPN. “A empresa junta um grupo de médicos e me paga para falar sobre a
doença e o tratamento”, afirma. Rodrigues indicou a Rafael a advogada
Fernanda Tavares Gimenez. Ela é remunerada pela Associação Brasileira de
HPN, uma ONG de pacientes que recebe apoio financeiro da Alexion.
Fernanda diz cobrar cerca de R$ 5 mil de cada cliente. “No caso do
Soliris, não tenho causa perdida”, afirma.
A estratégia é insistir no argumento da urgência e sustentar que, sem o
remédio, a morte do paciente é iminente. “Sou uma advogada que sai da
cadeira. Marco audiências com juízes e desembargadores e explico o caso
do paciente pessoalmente.” Alguns magistrados se sensibilizam. Outros,
não. São minoria. No ano passado, o governo estadual foi obrigado a
fornecer o Soliris a 34 pacientes. Fernanda foi a advogada de 28 deles.
“Isso virou uma grande indústria. Alguns médicos recebem estímulos do fabricante (viagens, benefícios)
para prescrever medicamentos de alto custo. As empresas financiam as
ONGs de pacientes e a isso tudo se associam os advogados”, diz o
secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Giovanni Guido Cerri. O
ponto de vista de quem enfrenta uma doença grave é outro. “Todos os
brasileiros deveriam ter o atendimento que estou recebendo. Não sou
melhor que ninguém, mas sinceramente não sei qual é o critério do
governo para decidir quem deve viver e quem deve morrer”, diz Rafael.
Capítulo 2
O que o caso de Rafael ensina sobre a saúde pública brasileira
Ninguém quer a morte de Rafael. Nem de qualquer outro doente que
recorre à Justiça para conseguir outros medicamentos caríssimos.
Mas, quando são obrigados a fornecer remédios caros da noite para o dia
(ao preço que o fabricante se dispõe a vender), os gestores do
orçamento público da saúde tiram o dinheiro de outro lugar. Com isso,
milhares (ou milhões) de cidadãos perdem. A verba destinada à compra de
um frasco de Soliris seria suficiente para garantir milhares de doses de
anti-hipertensivos e de outros medicamentos baratos que atingem a maior
parte da população. Sem interrupções. É preciso reconhecer que
priorizar o direito individual em detrimento do direito coletivo tem
consequências sobre a saúde pública.
Se os pacientes ficarem sem esses medicamentos, o resultado pode ser
uma trombose, um AVC, um infarto – todas as ameaças que o Estado procura
evitar ao fornecê-los a Rafael. Para salvar uma vida, pode abrir mão de
muitas outras. “Os recursos para cumprir as demandas judiciais saem do
orçamento público para ações prioritárias, como a prevenção básica de
problemas de saúde entre os mais pobres”, diz André Medici, economista
sênior do Banco Mundial, em Washington. “As demandas judiciais aumentam a
iniquidade do sistema de saúde e diminuem a qualidade de vida dos que
detêm menos recursos.”
O maior desafio dos administradores públicos é preservar o direito do
doente ao melhor tratamento sem que o Estado se torne perdulário. É
preciso lembrar que a saúde no Brasil é subfinanciada. O país aplica em
saúde cerca de 8,5% do PIB (considerando os gastos públicos e privados).
É pouco. A França investe 11%. O México gasta menos que o Brasil
(5,9%), mas tem taxas de mortalidade infantil e materna mais baixas,
dois parâmetros importantes para avaliar a qualidade da assistência à
saúde prestada por um país. O Brasil gasta pouco e gasta mal. Diante das
verbas limitadas, um bom gestor é aquele que evita o desperdício de
recursos ou o investimento em tratamentos inadequados. A pressão
crescente das ordens judiciais impede que isso aconteça.
Em 2005, o Ministério da Saúde foi citado em 387 ações. Gastou R$ 2,4
milhões para atender essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram
7.200 ações. A conta disparou para R$ 243 milhões. As ações contra o
governo federal são uma pequena parte do problema. Como todas as esferas
do Poder Público (federação, Estados e municípios) são corresponsáveis
pelo financiamento da saúde, a maioria dos pacientes processa só o
secretário municipal, só o estadual ou ambos.
Segundo os advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados
são os gestores das esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que
mais gastou com essas ações em 2010. As despesas chegaram a R$ 700
milhões para atender 25 mil cidadãos. Isso é quase metade do orçamento
do governo estadual para a distribuição regular de medicamentos (R$ 1,5
bilhão) a toda a população paulista. Os gastos com as ações judiciais
crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo
por mês”, diz o secretário estadual Giovanni Guido Cerri.
As ações são baseadas no Artigo 196 da Constituição, segundo o qual a
saúde é direito de todos e dever do Estado. Nem todos os juízes, porém,
interpretam esse artigo como uma obrigação explícita de que o Poder
Público deve prover ao paciente todo e qualquer tratamento solicitado.
Muitos, no entanto, dão sentenças favoráveis ao doente. Quando isso
acontece, o gestor citado é obrigado a fornecer o medicamento
rapidamente. Se ignorar a determinação, pode ir para a cadeia.
O Brasil dispõe de uma relação de remédios regularmente distribuídos no
SUS. Ela inclui as drogas necessárias para tratar as doenças que afetam
a maioria da população. Além dela, existe uma lista de medicamentos
excepcionais – em geral, de alto custo. São drogas novas, criadas para
tratar doenças raras ou cada vez mais comuns, como o câncer.
As associações de pacientes reclamam que o governo demora a incluir nas
listas drogas caras, mas de benefício inegável. Por isso, defendem
ações judiciais como uma forma legítima de pressão. “As ações estão
crescendo de forma desesperadora para os governos, mas elas os obrigam a
arrumar verbas. Se eles arranjam dinheiro para outras coisas, por que
não podem conseguir para remédios?”, afirma Fernanda Tavares Gimenez,
advogada de Rafael.
Não há dúvida de que alguns pedidos de pacientes são justos e
fundamentados. É verdade também que o SUS deveria ser mais ágil na
atualização das listas. Muitos juízes, porém, não têm condição técnica
de avaliar se um medicamento importado é melhor que o tratamento
existente. Nem se sua eficácia foi comprovada. Nem se é capaz de
provocar danos irreversíveis ao doente, além de rombos orçamentários.
A expressão “cada cabeça uma setença” se aplica perfeitamente ao caso
dos pedidos de medicamentos. O entendimento sobre o assunto varia entre
os magistrados. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma
série de audiências públicas sobre a questão – e a controvérsia
persiste. No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido
de uma paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já
oferece um tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o
fornecimento desse remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento
da saúde do Estado, prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.
No Ceará, o entendimento foi outro. O Estado foi obrigado a fornecer o
Soliris a quatro pacientes. Por enquanto, o governo comprou a droga para
dois deles. “O dinheiro necessário para atender os quatro corresponde a
67% do valor repassado pelo governo estadual para a compra de
medicamentos básicos do município de Fortaleza inteiro”, afirma Einstein
Nascimento, supervisor do departamento que controla os medicamentos de
alto custo da Secretaria da Saúde do Ceará. “Esse caso ilustra muito bem
o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde pública.”
Nos pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de
Buritama, uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O
orçamento do município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por
ano. No ano passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento
de demandas judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou –
uma cirurgia de implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson.
Preço: R$ 108 mil. “Todos os pacientes que entraram na Justiça ganharam a
causa. E o Judiciário nem mandou o Estado compartilhar os gastos
conosco”, diz Nancy Ferreira da Silva Cunha, secretária de Saúde de
Buritama. “Essas ações estão acabando com os pequenos municípios.”
Cada nova ação que chega à Justiça torna explícito o conflito entre o
direito individual e o direito coletivo à saúde. Os que administram
orçamentos públicos parecem ter a resposta na ponta da língua. “A saúde
pública tem de priorizar o interesse coletivo. Os interesses individuais
devem ser bancados pelas famílias. É como o transporte público. O
transporte é o mesmo para todos. Quem quiser andar de carro importado
tem de pagar esse luxo”, diz Cerri, secretário estadual de São Paulo.
Além dos pacientes, quem mais se beneficia da judicialização são as
empresas que fabricam os medicamentos. ÉPOCA procurou a Alexion, empresa
americana que fabrica o Soliris. Nenhum representante aceitou dar
entrevista. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos. Em nota preparada pela
assessoria de imprensa, a empresa afirmou não comentar suas atividades
no Brasil nem o número de brasileiros que atualmente recebem o
medicamento.
As ordens judiciais já não estão restritas apenas ao fornecimento de
remédios. Além dos gastos com drogas que não estavam previstos no
planejamento, em 2011 os juízes obrigaram o governo paulista a fornecer
outros itens que consumiram mais R$ 80 milhões. Não são medicamentos,
mas os juízes aceitaram a argumentação de que seriam indispensáveis à
saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder Público. Parece
lista de supermercado: sabão de coco em pó, escova de dente,
antisséptico bucal, xampu anticaspa, pilhas, copos descartáveis,
chupetas, papel toalha, creme fixador de dentaduras, fraldas
geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite, fubá, amido
de milho, farinha láctea...
Os administradores dos recursos da saúde tentam basear suas decisões em
avaliações técnicas do custo e do benefício dos medicamentos. Os
orçamentos para comprar remédios estão cada vez mais ameaçados pelos
preços altíssimos das novas drogas. Ele é justificado, segundo a
indústria farmacêutica, pelo investimento de longos anos em pesquisa
refinada e pelo universo relativamente reduzido de consumidores, no caso
das doenças raras. Grande parte dos custos nesse setor também está
relacionada a investimentos vultosos de marketing para promover as novas
marcas.
Os preços elevados combinados ao aumento da parcela da população que
sofre de doenças crônicas ameaçam o atendimento à saúde até mesmo nas
nações mais ricas. “Nos países desenvolvidos, o tratamento do câncer
transformou-se numa cultura de excessos”, escreveu o professor Richard
Sullivan numa edição da revista Lancet Oncology, publicada em
setembro de 2011. “Diagnosticamos demais, tratamos demais e prometemos
demais.” Lá, é cada vez mais frequente a pergunta cruel: é justo que o
Estado gaste centenas de milhares de dólares para prolongar a vida de um
doente de câncer em apenas dois meses?
Capítulo 3
E se Rafael fosse inglês?
No caso de doenças raras como a de Rafael, cada país age de uma forma.
Na Inglaterra, o governo garante o Soliris apenas aos pacientes que
tenham recebido pelo menos quatro transfusões de sangue no último ano.
Na Escócia, o governo não paga.
Nos Estados Unidos, alguns planos de saúde oferecem o remédio. A
maioria não o garante. O Medicare, o sistema público de saúde para
maiores de 65 anos, paga a droga apenas em raras situações. No Canadá,
que dispõe de um sistema público de saúde abrangente, apenas uma
província (Quebec) garante o Soliris. No Chile e na Argentina, alguns
doentes conseguem o remédio ao processar os planos de saúde ou os
governos.
É possível fazer diferente. Com critérios técnicos, gestores públicos
poderiam decidir como aplicar o orçamento da melhor forma possível, para
garantir a saúde do maior número de cidadãos por mais tempo. Existem
ferramentas matemáticas capazes de comparar os benefícios oferecidos por
diferentes formas de cuidado médico.
Para cuidar disso, o Reino Unido criou o Instituto Nacional para a
Saúde e a Excelência Clínica (Nice). Em atividade desde 1999, o órgão
faz esses estudos e realiza reuniões com representantes da sociedade
(pacientes, médicos, indústria farmacêutica) para debater o que deve ou
não ser oferecido pelo National Health Service (NHS), o sistema que
banca 95% de toda a saúde no país. O que o Nice decide oferecer vale
para todos. Isso não quer dizer que os britânicos estejam satisfeitos
com os serviços prestados. Os protestos são constantes. Em 2008, doentes
de câncer renal fizeram uma grande mobilização para exigir que o
governo oferecesse uma nova droga. O remédio só foi adotado muitos meses
depois – mesmo assim para pacientes que preenchiam critérios
predeterminados. Não há exemplo, no mundo, de país que tenha um
orçamento tão elástico que seja capaz de satisfazer todos os desejos. Há
sempre um grupo exigindo mais drogas para alguma doença. Mas, pelo
menos, as regras podem ser transparentes e universais. “Economias
emergentes como o Brasil enfrentam desafios semelhantes aos do Reino
Unido: enquanto as doenças crônicas avançam e demandam mais e mais
recursos, os dois países têm de zelar pela equidade no acesso à saúde”,
diz Kalipso Chalkidou, uma das diretoras do Nice. “Temos
trocado experiências com o governo brasileiro e esperamos estreitar essa
parceria em 2012.”
Por enquanto, o volume das decisões judiciais leva o Ministério da
Saúde a pedir suplementações orcamentárias ao Congresso Nacional.
“Poderíamos estar pedindo esse dinheiro extra para melhorar a atenção
básica à população”, afirma Carlos Gadelha, secretário de Ciência,
Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. “Em vez disso,
pedimos dinheiro para bancar medicamentos que podem ser danosos ao
cidadão que solicitou um remédio que não foi aprovado pela Anvisa. Isso é
uma irracionalidade.”
Em outubro, a presidente Dilma Rousseff regulamentou a Lei no 12.401,
que estabelece parâmetros para a inclusão de medicamentos no sistema
público. Ela determina que o SUS não deve fornecer medicamentos,
produtos ou procedimentos clínicos e cirúrgicos experimentais sem
registro na Anvisa. É possível que a lei sirva de parâmetro técnico aos
juízes. Muitos advogados, porém, acreditam que sempre será possível
argumentar com base na garantia constitucional e, dessa forma, garantir o
fornecimento do remédio pelo sistema público.
Além de destinar mais recursos à saúde, o Brasil precisa definir
explicitamente o que vai e o que não vai financiar. A regra deve ser
clara e válida para todos – indistintamente. É uma decisão dura e
impopular, mas é a melhor forma de amenizar a desigualdade. No cenário
atual, Rafael é um felizardo. “Melhorei 100% com esse remédio. Parece
que foi instantâneo. Logo na primeira infusão, fiquei cheio de pique.”
Nas missas de domingo, ele agradece. Toca guitarra enquanto a mãe canta.
Com 1,80 metro e 103 quilos, risonho e falante, não poderia parecer
mais saudável.