Liz Reisberg: Com expansão, formação de professores é prioridade para universidades
Fábio de Castro - Agência FAPESP
Seguindo a tendência mundial, o Brasil tem
passado por um processo meteórico de expansão do ensino superior. Mas a
crescente universalização tem um efeito colateral grave: a queda da
qualidade, de acordo com Liz Reisberg, do Boston College (Estados
Unidos). Segundo Reisberg, nesse contexto, a formação de professores
qualificados passa a ser a prioridade número um para países como o
Brasil.
Pesquisadora do Centro para Educação Superior Internacional (CIHE, na
sigla em inglês) do Boston College, Reisberg é considerada uma das
principais especialistas em questões relacionadas à internacionalização,
acesso, equidade e qualidade e na reforma do ensino superior na América
Latina. Sua experiência no continente teve início durante o doutorado,
sobre novas estratégias para aprimorar a qualidade do ensino superior na
Argentina.
Entre os dias 18 e 21 de julho, Reisberg participou da organização e das atividades da 1ª Escola Zeferino Vaz de Educação Superior
(eZVes), realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O
evento reuniu dirigentes do ensino superior e alguns dos principais
especialistas do mundo na área, com a finalidade de analisar e debater
as tendências e desafios desse setor educacional.
Em São Paulo, Reisberg concedeu a seguinte entrevista à Agência FAPESP.
Agência FAPESP – O que caracteriza de forma mais marcante as tendências globais do ensino superior?
Liz Reisberg – À medida que passamos de uma sociedade de
trabalhos manuais para uma sociedade tecnológica, o ensino superior
ganhou mais importância e mais responsabilidade em relação à inovação e
ao desenvolvimento econômico. Aumentou muito a mobilidade de estudantes e
pesquisadores e a cooperação internacional entre as instituições. Mas
talvez a característica mais marcante dessas mudanças, especialmente na
última década, seja uma tendência à expansão e universalização do ensino
superior. Países como Brasil, Índia e China estão no centro das
atenções, porque são sociedades que se modernizaram e ganharam muita
importância na economia internacional, gerando uma demanda muito grande
de mão de obra qualificada. O ensino superior nesses países se tornou
uma prioridade urgente e a expansão das universidades nesses lugares tem
sido imensa, especialmente no Brasil. Só que essa expansão gerou também
um grande problema: inserir mais gente no ensino superior tem um
impacto importante nos custos e na qualidade desse ensino.
Agência FAPESP – É possível conciliar expansão e qualidade? Liz Reisberg – É muito difícil. Acesso, custo e qualidade são
fatores estreitamente correlacionados, não se pode alterar um deles sem
ocorrer impactos sobre os outros. É preciso encontrar um equilíbrio, mas
isso não tem acontecido. Brasil, Índia e China expandiram muito
rapidamente e a qualidade caiu demais. É muito fácil controlar o
equilíbrio entre expansão, custo e qualidade quando só se tem 5% ou 6%
da população com idade universitária inserida no sistema de ensino
superior. Mas quando se está na situação de grande parte dos países
hoje, com 40% ou 50% dos jovens nas universidades, a dificuldade para
encontrar esse equilíbrio se torna um pesadelo. No Brasil o que se tem
feito é expandir, em primeiro lugar, enquanto a preocupação com a
qualidade vem a reboque.
Agência FAPESP – Esse impacto da expansão na qualidade se deu tanto no campo do ensino como no campo da pesquisa? Liz Reisberg – Estou me referindo ao lado educacional. A pesquisa
está restrita a um número muito pequeno de instituições. Apesar da
enorme expansão universitária, o Brasil provavelmente não aumentou seu
número de pesquisadores no mesmo ritmo. O país tem um grupo de elite
produzindo pesquisa de classe mundial, um grupo concentrado, e muito
poucas universidades. Mas não acho que a qualidade da pesquisa está
afetada pela expansão. O país precisa ainda aumentar o número de
pesquisadores.
Agência FAPESP – Por que a expansão exerce tanto impacto negativo na qualidade do ensino? Há falta de professores? Liz Reisberg – É muito mais fácil expandir o número de estudantes
que aumentar o número de professores qualificados. Para produzir um
professor novo, é preciso pelo menos seis anos, normalmente oito anos,
às vezes dez anos. É um processo muito longo. Podemos aumentar muito o
número de estudantes em um ano, com uma decisão política. Acho que por
trás do problema da qualidade – em particular no Brasil, China e Índia –
temos um lapso entre o número crescente de estudantes e o número de
professores qualificados. É um imenso desafio. Vejo o programa Ciência
Sem Fronteiras como uma tentativa de aumentar o número de professores
qualificados, mas é preciso mais. A China está fazendo algo semelhante,
mas não na mesma escala, o que é surpreendente, porque eles precisam
ainda mais de professores qualificados.
Agência FAPESP – O que poderia ser modificado na maneira como são formados os professores? Liz Reisberg – Acho que há algumas soluções criativas que o
Brasil não está aproveitando. Uma delas é abrir mais espaço para
professores que tenham apenas o mestrado, mas não doutorado, formando
equipes com apenas um professor doutor, que trabalharia como mentor.
Esse professor sênior poderia, ao mesmo tempo, dirigir e avaliar a
atuação dos outros docentes em sua atividade de ensino e ajudá-los a
capacitá-los como pesquisadores. Até onde sei, o Brasil não está usando
esse recurso. Além de enviar gente para fora do país ou para programas
de doutoramento, é importante investir na capacitação dos professores
que já têm mestrado, usando a qualificação dos professores doutores como
guia.
Agência FAPESP – É possível elevar a qualidade do ensino ao nível da pesquisa feita no Brasil? Liz Reisberg – Sim, contanto que as prioridades sejam repensadas.
Todo sistema de ensino superior tem pesquisadores, mas não é correto
pensar que todos os professores precisam ser excelentes pesquisadores.
Eles precisam ter boas habilidades de pesquisa apenas para transmitir
essas habilidades aos alunos, mas não é todo professor que precisa
necessariamente fazer pesquisa importante. O que precisamos é ter bons
professores. Ter bons professores é mais importante que ter bons
pesquisadores.
Agência FAPESP – Por quê? Liz Reisberg – Um dos problemas que discutimos no workshop na
Unicamp foi que a maior parte das pessoas que vão à universidade, no
Brasil, está apenas em busca de inserção em uma carreira profissional.
Formam-se muito mais profissionais do que pesquisadores. Esses
estudantes precisam de ensino de excelência. Só que no Brasil o sistema
recompensa apenas os bons pesquisadores, mas não recompensa nem
incentiva os bons professores. Na maior parte dos países ocorre o mesmo:
os docentes são avaliados pela quantidade de pesquisa que produzem.
Esquecem que a maior parte dos alunos precisa exatamente de excelência
no ensino. Repito: nem todos os professores precisam ser ótimos
pesquisadores. É preciso dar mais ênfase em cultivar a excelência no
ensino. Esse é um novo movimento no mundo, uma tendência.
Agência FAPESP – Para estimular a excelência do ensino, então, é preciso repensar todo o sistema de ensino superior? Liz Reisberg – Não necessariamente. Muita coisa pode ser feita
isoladamente. Por exemplo, durante o workshop em Campinas, o professor
Peter Dourmashkin falou sobre a experiência de ensinar Física no
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Eles perceberam que
muitos estudantes no primeiro ano fracassaram, ou simplesmente
desistiram da carreira, alegando dificuldades. Peter e seus colegas
descobriram que o problema não era que a física era muito difícil, mas
que estava sendo mal ensinada. Tiveram que mudar completamente a maneira
de ensinar e obtiveram sucesso. Tratava-se de uma situação pela qual
todos já passamos: temos um excelente pesquisador ensinando ciência, mas
talvez ele seja um péssimo professor. Isso desilude muitos estudantes.
No MIT, uma das principais instituições científicas do mundo, eles
admitiram: não estamos fazendo um bom trabalho de ensino. Ensinar, para
mim, é de maneira geral uma atividade criticamente subvalorizada nas
universidades, mas reconhecer o problema já é um grande passo.
Agência FAPESP – A senhora disse que nem todo professor
precisa ser um grande pesquisador. Todas as boas universidades precisam
se dedicar à pesquisa? Liz Reisberg – Precisamos parar de pensar que todas as
universidades se tornem instituições de excelência em pesquisa e começar
a pensar em um sistema de classe mundial. Precisamos desenhar sistemas
nacionais para abordar uma gama mais ampla de necessidades para a
educação superior. Nem é preciso que o Brasil invista só em
universidades. Seria importante investir também em um nível
universitário mais técnico, de curto prazo. No Brasil, acho, há um
grande lapso entre a escola secundária e a universidade. Se tivéssemos
mais desses programas, talvez fosse possível atenuar essa lacuna e dar a
esses jovens as habilidades que eles não tiveram na escola secundária.
Agência FAPESP – Qual sua opinião sobre o vestibular como sistema de acesso à universidade? Liz Reisberg – É problemático, mas não conheço nenhum país que
resolveu isso. O Enem poderia ser uma solução interessante, mas o
problema é que acaba privilegiando os estudantes de escolas privadas,
que têm melhor qualidade. É um padrão de qualidade interessante para
selecionar os alunos, mas gera um problema de equidade. A China tem um
exame nacional com foco no mérito, o que resolve o problema da equidade.
Mas a competição é tão acirrada e o estresse é tão grande – os
candidatos chegam a estudar 13 horas por dia – que o fracasso muitas
vezes leva ao suicídio. Não acho que seja uma boa ideia. É justo em
relação ao mérito, mas destrói a saúde mental das pessoas. É realmente
muito difícil pensar em uma alternativa. Gosto muito do que a Unicamp
está fazendo como o ProFis [Programa de Formação Interdisciplinar Superior].
Agência FAPESP – Por que a senhora admira o ProFis? Liz Reisberg – Trata-se de um curso piloto voltado para
estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas de Campinas.
Os estudantes são selecionados pelas notas do Enem e recebem uma visão
integrada das várias áreas, por dois anos. Os que obtêm sucesso podem
ingressar na Unicamp sem vestibular. É um experimento muito
interessante. É uma maneira de diminuir a lacuna entre a escola
secundária e a universidade também. Acho que não é perfeito, mas dá mais
acesso à oportunidade de entrar uma universidade de qualidade. É uma
alternativa muito inovadora que não requer diminuição da qualidade.
Agência FAPESP – A privatização, a terceirização, a
cobrança de taxas e mensalidades em universidades públicas foram
consideradas pelo relatório da Unesco como tendências. No Brasil há
grande resistência a isso. Qual sua opinião sobre essa tensão? Liz Reisberg – É uma questão internacional e ninguém tem uma
resposta ideal para isso também. Achamos que, em longo prazo, ter um bom
sistema de educação superior gratuito não é algo sustentável. É
inviável manter esse sistema para sempre, especialmente com a expansão.
No Brasil, há uma forte cultura contrária à cobrança. A gratuidade é
vista como um direito que não pode ser retirado. Mas não se trata, nesse
caso, de um dogma neoliberal: é uma concepção equivocada afirmar que a
universidade tem que ser gratuita, pelo simples fato de que nada é
gratuito. A questão é quem está pagando. A ideia da gratuidade é uma
armadilha. Adoraria que a educação fosse gratuita, mas isso é
insustentável do ponto de vista econômico.
Agência FAPESP – Dos sistemas existentes, qual poderia ser apontado como modelo? Liz Reisberg – Como eu disse, nenhum é ideal. Mas a Austrália tem
um sistema do qual eu gosto muito. Os estudantes são bastante
subsidiados, mas pagam algo de acordo com a renda familiar. Ou podem
conseguir um empréstimo e pagar de volta. Mas, diferentemente dos
Estados Unidos – onde todos precisam ressarcir o investimento no final,
com juros –, na Austrália o pagamento é mensal e nunca pode superar 4%
da renda do indivíduo.
Agência FAPESP – As universidades têm buscado a internacionalização. Há algo que pode ser feito para potencializar esse esforço? Liz Reisberg – Reconheceu-se que é impossível hoje viver em um
universo restrito ao local e aumentaram muito as cooperações
internacionais e intercâmbio de estudantes e pesquisadores. Uma
tendência, a partir de agora, é investir em experiências internacionais
de período mais curto. Desenvolver programas que possibilitem
participações rápidas em programas no exterior. Pode ser por duas
semanas, ou um mês, durante as férias. Para um estudante
norte-americano, por exemplo, há uma grande diferença entre estudar
antropologia em um livro e passar duas semanas no meio da floresta
peruana. É algo que tem um custo, mas não se compara ao dos programas
mais longos. Acho que o Brasil poderia investir mais nessa dimensão da
internacionalização.
Agência FAPESP – Com as novas tecnologias o acesso à
informação ficou muito fácil e isso poderia abrir espaço para uma
mudança no conteúdo do que é ensinado na universidade. Essa mudança está
ocorrendo? Liz Reisberg – Começa a ocorrer, mas está ainda muito longe do
que seria satisfatório. No Brasil, me parece que há uma ênfase grande
demais no conteúdo. O professor quer passar tudo o que sabe sobre
física, psicologia, matemática. É o modelo que fazia sentido há 100
anos. O professor passava, na classe, essa informação que não podia ser
conseguida em outro lugar. Agora, podemos encontrá-la no Google. As
pessoas andam com seus computadores no bolso. Por que gastar horas de
aula com esse tipo de informação? Seria melhor dedicar esse tempo ao
aprimoramento do espírito crítico, à análise, incentivar criatividade,
pensamento, colaboração. Dependendo da área, calcula-se que pelo menos
20% do que você aprende na graduação já está obsoleto quando você chega à
pós-graduação. Falamos muito nisso no seminário e aparentemente esse
movimento já começou no Brasil.
Agência FAPESP – Sobre a questão da avaliação da pesquisa
na universidade: como encontrar o equilíbrio entre a quantidade de
publicações e a qualidade? Liz Reisberg – Há uma grande pressão por publicar em alguns
países, incluindo o Brasil. Se só recompensamos as pessoas pelo número
de artigos publicados, estamos estimulando a pesquisa de baixa qualidade
e até mesmo estimulando a fraude dos periódicos que aceitam pagamento
para publicar. Trata-se de uma perversão do sistema, semelhante à
questão do equilíbrio entre ser bom pesquisador e ser bom professor.
Precisamos nos preocupar em que atitude o sistema está recompensando e
como essa escolha influencia a qualidade.
Agência FAPESP – Para melhorar a qualidade da pesquisa é preciso criar bons mecanismos de avaliação. Como fazer isso?
Liz Reisberg – Se eu tivesse essa resposta, sem dúvida ganharia o prêmio Nobel.