Pesquisadora analisa formação de preceptores de residências médicas no Brasil e Espanha
Coordenadora do projeto Preceptoria em programas de residência no Brasil e Espanha: ensino, pesquisa e gestão,
iniciado em 2014, a médica Adriana Aguiar, pesquisadora do Laboratório
de Comunicação e Saúde (Laces) do Instituto de Comunicação e Informação
Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), em entrevista ao site da unidade
da Fundação, faz um balanço da pesquisa. No estudo, ela avalia de que
maneira o ensino da comunicação pode auxiliar na formação de mentores
em residências médicas e multiprofissionais voltadas à saúde
da família e da mulher.
Segundo Aguiar, o projeto completa dois anos em março de 2016 (foto: Icict/Fiocruz)
Segundo ela, o projeto, que completa dois anos em março de 2016,
gerou uma base de dados preciosa do ponto de vista qualitativo e
quantitativo, uma vez que a investigação abrange dois países e cinco
áreas do conhecimento em ambiente hospitalar e de atenção primária.
"Temos uma enorme riqueza de nuances que revelam uma importante agenda
de trabalho para o futuro. Preliminarmente, o estudo tem nos ajudado a
compreender como estes preceptores interpretam o seu papel, abordando
suas múltiplas incumbências na atenção à saúde, educação e pesquisa em
serviço”, adianta a pesquisadora. Leia a entrevista completa:
Você pesquisa o tema da formação em saúde desde quando?
Adriana Aguiar: Pesquiso a formação profissional em
nível superior desde o doutorado, realizado na Universidade de Harvard,
cuja Escola de Medicina fez uma mudança curricular de vanguarda,
integrando uma série de aspectos do currículo e adotando a “Aprendizagem
Baseada em Problemas”. Lá estudei o ensino-aprendizagem da relação
médico-paciente. Depois comecei a estudar a preceptoria da Residência de
Medicina de Família e Comunidade na Espanha. Com uma bolsa de pesquisa
da Fundação Carolina, identifiquei uma série de elementos
importantíssimos, tanto do ponto de vista da regulação da formação de
residentes e de preceptores, como também o papel do preceptor no âmbito
dos serviços.
Quando começou a trabalhar com esse tema na Fiocruz?
Adriana Aguiar: Na Fiocruz, tudo começou em 2009,
quando participei da elaboração de um currículo de mestrado profissional
para formar lideranças na estratégia de saúde da família na Região
Nordeste, que incluiu a Fiocruz Ceará, juntamente com cinco outras
instituições. Esse curso é oferecido pela Rede Nordeste de Educação em
Saúde da Família (Renasf). O perfil de egressos na época apontava para a
necessidade de pesquisarmos como os preceptores estavam trabalhando,
suas atividades de ensino, pesquisa e gestão. Depois elaborei um projeto
de pesquisa que foi apoiado pelo Ministério da Saúde, em 2012, para
estudar a residência em Medicina de Família e a Residência
Multiprofissional em Saúde da Família, concomitantemente com minha
entrada no Laces [Laboratório de Comunicação e Saúde do Icict]. O
Ministério encampou a proposta e sugeriu estudar também preceptores de
hospitais, porque hoje a residência se dá predominantemente no ambiente
hospitalar. Como as mulheres são maioria entre os prestadores de serviço
e usuários do setor saúde, além de pessoas centrais na dinâmica
familiar, decidimos estudar preceptoria da saúde da mulher na residência
médica de ginecologia e obstetrícia, na Residência Multiprofissional em
Saúde da Mulher e na enfermagem obstétrica.
Qual a metodologia utilizada na pesquisa?
Adriana Aguiar: É uma pesquisa quali-quantitativa.
Utilizamos um questionário eletrônico que foi desenvolvido com base no
estudo que fiz na Espanha, com 50 perguntas sobre o perfil profissional
desses preceptores, as atividades que realizam e realizaram e as
percepções que têm das condições de trabalho, do seu próprio preparo, e
qual tipo de apoio desejam. Selecionamos, no Brasil, programas de
residência que recebem apoio do Ministério da Saúde e pedimos que os
coordenadores nos colocassem em contato com os preceptores, para
responderem esse questionário. Movimento análogo foi feito na Espanha,
mas lá estudando especificamente a Residência em Medicina de Família e
Comunidade. Nas visitas para o componente qualitativo, estivemos em
quatro regiões do país, sendo investigados 13 programas no Brasil e três
na Espanha. Na Espanha trabalhamos com as oito províncias da Andaluzia,
com 103 preceptores respondentes. Fechamos essa coleta em outubro
último.
É possível adiantar alguns resultados preliminares do projeto?
Adriana Aguiar: O projeto completa dois anos em
março de 2016. Construímos com ele uma base de dados preciosa, do ponto
de vista qualitativo e quantitativo. Considerando que trabalhamos com
dois países e com cinco áreas do conhecimento em ambiente hospitalar e
de atenção primária, temos uma riqueza enorme de nuances dos processos,
que revelam uma agenda de trabalho para o futuro muito importante. Por
exemplo, estamos trabalhando nas análises das entrevistas dos gestores
de residência. Está claro que temos que trabalhar na formação dos
gestores desses processos educacionais, pois essas pessoas têm que estar
aptas a fazer mediações, a ressignificar e reinterpretar uma série de
normas, adequar o que está normatizado à realidade prática. Os
resultados também vão mostrar os mecanismos de mediação exercidos pelo
preceptor, que é o mediador entre o aluno e a equipe, o serviço e a
população, o ensino e o trabalho. Portanto, são perfis profissionais
extremamente sofisticados, que fazem a ponte entre formação e prestação
de serviço.
Explique em linhas gerais o que você percebeu sobre a relação médico-paciente no Brasil, comparada à da Espanha?
Adriana Aguiar: Embora exista um prestígio associado
à função do preceptor, tanto lá quanto aqui o que acontece na prática é
um acúmulo de tarefas. Residentes mais velhos, com outro grau de
informação e autonomia maior, eventualmente vão dividir os encargos
assistenciais e apoiar a prestação de serviço. Os residentes que estão
iniciando e se aclimatando nos serviços precisam se profissionalizar,
pois estão saindo da graduação com uma bagagem institucional e prática
ainda pequena. A residência é muito importante para estabelecer a
relação com pacientes/usuários, inclusive no que tange ao aprendizado
das atitudes profissionais.
Onde a comunicação entra nesse processo?
Adriana Aguiar: A comunicação perpassa a atuação da
instituição de saúde, via política de humanização, e dos profissionais
com os usuários, considerando a avaliação sobre a informação a ser
veiculada, as atitudes profissionais compatíveis e as bases de dados que
precisam ser trabalhadas de forma adequada. E entra pela via do ensino e
da formação desde a graduação, pois a comunicação é considerada
competência geral para as 14 profissões da área de saúde que tiveram
diretrizes homologadas entre 2001 e 2004. Mas há ainda pouca informação
sobre como esse ensino é feito na graduação. Na residência, os cursos de
formação de preceptores cada vez mais abordam questões da comunicação.
Como as ferramentas conceituais de comunicação poderiam ser aplicadas na prática do profissional de saúde?
Adriana Aguiar: A leitura que a comunicação faz das
ciências sociais, especialmente na América Latina, é uma leitura crítica
da relação entre comunicação e sociedade. Se essa leitura fosse
aplicada à relação entre saúde e sociedade, seria muito interessante. Há
referenciais de valores, de conhecimentos, de linguagens, de intenções
muito diferentes entre paciente e médico, para usar as vias mais
clássicas, que mostram que não basta ter vontade de tentar compreender a
linguagem que a pessoa está usando, que metáforas ela aplica. Há
camadas de sentidos que precisam ser problematizadas. Eu tenho
trabalhado para que a construção compartilhada de sentidos sobre o
processo saúde-doença entre profissionais e usuários seja um objetivo
dos profissionais. Espero que no futuro os profissionais de saúde se
orientem para construir sentido conjuntamente com o paciente, que
aprendam a escutar o sentido que o outro atribui a sua própria vida e
adotem uma atitude de mais interesse pelo outro que está a sua frente.
Existe uma pressão muito grande para que as pessoas obedeçam ao que lhes
é orientado pelos profissionais, e quando isso não acontece o
profissional interpreta como rebeldia, não entende que o sentido que o
outro atribui é muito distinto. Espero que possamos influenciar cada vez
mais os currículos nessa direção, e acho que muita coisa já melhorou. O
espaço para esse tipo de reflexão nos congressos de educação médica é
crescente.
Os jornalistas em geral entendem o Sistema Único de Saúde (SUS)?
Adriana Aguiar: Os alunos do PPGICS [Programa de
Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Icict] da área de
comunicação são unânimes em dizer que existe uma superficialidade muito
grande na abordagem da saúde nos cursos de comunicação. Isso é muito
preocupante porque a mídia acaba veiculando muito questões pontuais e
individuais do que não funciona no SUS e isso gera uma impressão geral
de que nada funciona no sistema. Os jornalistas poderiam contribuir
muito mais caso houvesse uma solidez de formação sobre esse tema na
faculdade.
Qual o papel do Icict nesse processo de formação?
Adriana Aguiar: Nós do Icict temos um papel muito
importante de aportar conhecimentos do campo de comunicação para essas
lideranças do ensino da saúde que estão problematizando a questão da
comunicação. São poucas as pessoas na área da saúde que têm uma formação
em comunicação. Além disso, não queremos que o jornalista faça um curso
de graduação em saúde coletiva, mas que saiba trabalhar as questões do
SUS, inclusive nas suas contradições. No Laces temos lideranças que
estão trabalhando essa questão há alguns anos com uma produção teórica
muito importante.
Esse movimento está acontecendo na formação do profissional em saúde?
Adriana Aguiar: Em âmbito geral, a formação em saúde
ainda é muito voltada para a atenção às queixas que as pessoas trazem.
Segundo a Constituição, o SUS é o ordenador da formação do profissional
de saúde, mas ainda está em disputa quem deve regular a formação,
planejar a oferta, monitorar, avaliar os programas e projetos
pedagógicos, se o MS ou o Ministério da Educação (MEC). Na Espanha há
uma lei de regulação das profissões sanitárias, que estabelece as bases
do trabalho e da formação em saúde. No Brasil, a legislação que regula
esse âmbito da formação ainda tem lacunas muito importantes. Precisamos
fortalecer a massa crítica de pessoas que estão atuando nesse âmbito.
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