Avaliação no ensino superior: origens e dilemas na experiência internacional e brasileira | |
Elizabeth Balbachevsky
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A
universidade é, no imaginário brasileiro, uma instituição completa:
nela, são relevantes as dinâmicas e os interlocutores internos: os seus
professores, os seus estudantes e os seus funcionários. Daí a
concepção arraigada de que, para democratizá-la, basta estabelecer
canais que permitam vocalizar os interesses, vontades e ideais
presentes no interior dessa instituição. Entretanto, essa instituição
está longe de ser completa, e, cada vez mais, as pressões que vem de
fora dos muros desse mundo fechado são mais fortes, não só no Brasil
mas em toda parte do mundo. Daí o interesse da sociedade em saber o que
acontece dentro dos muros dessa torre de marfim, e a pressão por
avaliar os resultados das atividades acadêmicas e de pesquisa. Quais as
razões dessa mudança profunda de atitude por parte dos governos e das
sociedades do mundo atual?
Essas
razões são múltiplas, mas duas delas se destacam. Em primeiro lugar,
elas estão associadas à mudança de escala dos custos do ensino superior
para as sociedades. No passado, o ensino superior era para poucos. Em
todos os países, apenas cerca de um a dois por cento dos jovens, entre
18 e 22 anos, tinham acesso a esse nível de ensino. Então, qualquer que
fosse o custo unitário da educação recebida por esses poucos
privilegiados, o valor total de recursos públicos comprometidos com a
educação superior representava apenas uma migalha nos gastos totais dos
governos. Hoje, não é mais assim: o acesso ao ensino superior se
massificou – em alguns países, como a Coreia, mais de 90% dos jovens
estão na universidade –, e os custos para manter as universidades
funcionando consomem uma fatia expressiva dos recursos que os governos
arrecadam da população sob a forma de impostos.
Em
segundo lugar, os resultados das pesquisas realizadas nas
universidades constituem um dos fatores mais importantes para garantir
vantagens competitivas para a economia de um país, dentro de um cenário
cada vez mais globalizado. A “descoberta” da importância do
conhecimento para o desenvolvimento econômico é uma história longa e
bastante interessante, mas que não vamos tratar aqui. Entretanto, basta
assinalar que desde pelo menos meados dos anos oitenta do século
passado, economistas de todas as vertentes começaram a apontar para o
conhecimento, e para a capacidade diferencial do uso desse
conhecimento, como um dos principais fatores que ajudam a entender as
diferenças no desempenho das economias dos países. Também por essa
porta, aumentou o interesse das sociedades e dos governos sobre o que
acontece dentro das universidades, de que forma elas usam o dinheiro
público que para lá é canalizado, e qual a qualidade dos resultados
obtidos com o uso dele .
Mas
a universidade é uma caixa preta. Uma instituição complexa, com um
modelo de governança muito peculiar, onde a capacidade decisória
substantiva tende a estar concentrada nas unidades mais baixas na
hierarquia institucional, os departamentos e centros de pesquisa. Nesse
ambiente, as decisões são produto da pressão cruzada entre os
interesses dos diferentes grupos locais e uma obscura “comunidade de
pares” que, pelo menos nos países mais maduros, controla uma parte
relevante dos recursos de prestígio ligados à carreira acadêmica. Nesse
ambiente, é difícil para alguém de fora avaliar o que de fato acontece
dentro das universidades. Um bom ponto de referência teórica para
entender essa dificuldade é o modelo da relação de delegação, aquela
que se estabelece entre aquele que contrata um serviço especializado e
aquele que executa esse serviço: quem contrata não tem a expertise
necessária para avaliar se, de fato, contratou o melhor profissional,
ou se esse profissional está levando em conta os interesses do cliente
quando desenvolve seus projetos. Esse é o dilema básico da relação
entre demandante-representante, ou o conhecido modelo
“principal-agent”.
Esse modelo foi desenvolvido para analisar situações em que um ator – o demandante (principal) – delega a
responsabilidade por uma ação a outro ator em troca de recursos. É,
portanto, um modelo que busca entender os dilemas e tensões que
acompanha um tipo específico de relação social – a delegação – onde o
demandante dispõe de recursos, mas não aqueles necessários para a
realização de seus objetivos (por exemplo, tem dinheiro, mas não as
habilidades necessárias para realizar um empreendimento). Para alcançar
seus objetivos, ele precisa mobilizar outro ator – o agente (ou
representante) – que aceita agir em favor do principal em troca dos
recursos disponibilizados pelo principal.
Existem dois dilemas de ação coletiva associados ao processo de delegação: o risco moral (moral hazard) e erros de seleção (adverse selection).
O risco moral decorre das dificuldades que o demandante tem para
garantir que seus objetivos sejam de fato alcançados por meio da ação
do representante. Uma vez que o representante tem objetivos e
interesses próprios, que nem sempre coincidem com os objetivos do
demandante, há sempre a possibilidade de que o representante opte por
priorizar seus objetivos. Os erros de seleção, como o nome indica,
estão associados à dificuldade que o demandante tem para assegurar que o
agente escolhido é a sua melhor opção – porque realmente tem o melhor
perfil de competências e habilidades – para alcançar seus objetivos.
Ora,
não é difícil visualizar que a relação da universidade com a sociedade
(e com os governos) se reveste justamente dessas características.
Nossas sociedades assumem que as universidades são necessárias, e que
fazem algo bom, útil, e potencialmente relevante para todos. Por isso se
justifica usar recursos arrecadados de todos, por meio dos impostos,
para sustentá-las. Enquanto essa percepção dos resultados positivos da
universidade permaneceu difusa, e os custos dessa instituição eram
pequenos, foi possível preservar aquilo que alguns autores chamam de delegação cega (blind delegation),
em que o governo e a sociedade – no papel de demandantes – partem do
princípio de que há uma completa coincidência entre aquilo que a
universidade quer e faz e os interesses maiores da sociedade (do país,
do Estado etc., etc.). Daí o entendimento absoluto da autonomia
universitária: a universidade faz o que mais lhe convém, porque o que
lhe convém é também aquilo que melhor atende às necessidades da
população e do Estado.
Entretanto,
quanto maior o custo da universidade, e mais precisas as expectativas
que a sociedade tem sobre ela, maior é a dificuldade para se manter
esse entendimento, até certo ponto ingênuo, sobre os benefícios
advindos. Exatamente por isso, em diferentes partes do mundo, se
assiste hoje à derrocada do antigo “contrato social” entre a
universidade e a sociedade. Em seu lugar, diz a literatura
internacional, se impõe um modelo de delegação mais complexo (e menos
amistoso para a universidade), no qual essa instituição é chamada a
prestar contas dos resultados de suas atividades e dos custos de sua
operação. Isso é o ponto nevrálgico da assim chamada avaliação das
universidades.
O formato dessa avaliação difere de país para país. Inicialmente, essas avaliações estavam focadas na qualidade dos inputs:
o tamanho das bibliotecas, a qualidade dos equipamentos de pesquisa e
de ensino, a qualificação do corpo docente. Nos modelos mais
primitivos, essas avaliações tinham uma lógica fiscalizadora:
demandavam para todas as universidades, de forma homogênea, a
apresentação de um certo número de indicadores simples, tais como o
número de livros nas bibliotecas, a proporção de professores titulados,
o número de artigos publicados por esses pesquisadores etc. Com o
tempo, alguns países elaboraram modelos de avaliação mais complexos,
tendo por base contratos específicos, negociados com cada universidade,
e centrados nos resultados das atividades dessas instituições: número
de alunos formados e empregados, a qualidade desses empregos, o impacto
das atividades de pesquisa de seus professores etc.
Questões
dessa natureza também estão presentes na experiência brasileira.
Também aqui avançamos para a criação de estruturas bastante complexas
de avaliação. Entretanto, na realidade brasileira, o problema da
avaliação do ensino superior se mistura com a necessidade de fiscalizar
o nosso imenso setor privado, responsável pela formação de mais de 70%
de nossos jovens. Com isso, a avaliação do ensino superior permanece
encalacrada num modelo híbrido que mistura o papel de fiscal e
avaliador. De um lado, temos instrumentos bastante avançados de
avaliação, por outro lado, o uso que fazemos deles é muito primário.
Nossa avaliação ainda está centrada na exigência de um conjunto
relativamente pequeno de indicadores, que são impostos homogeneamente a
todas as instituições de ensino, sejam elas grandes universidades
públicas de pesquisa, ou pequenas escolas do interior. O problema desse
modelo de avaliação é que ele alimenta estratégias diversionistas,
tanto nas instituições públicas como nas instituições privadas. No
setor privado, ela alimenta a tendência à concentração em
megainstituições, capazes de arcar com os custos de produzir os
indicadores demandados sem que isso atrapalhe seus negócios. No setor
público, esse modelo de avaliação não altera a configuração de forças
dos diferentes interesses presentes na governança da instituição. As
manobras internas para responder às demandas da avaliação terminam por
contribuir para aumentar a percepção da sociedade de que essas
instituições fazem menos do que poderiam, mesmo quando isso não é
verdade.
* Elizabeth Balbachevsky
é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de
São Paulo e pesquisadora associada ao Penses – Fórum de Pensamento
Estratégico da Reitoria da Unicamp e associada ao Lees, Laboratório de
Estudos em Ensino Superior, da Unicamp.
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Blog do Curso de Medicina da Universidade Estadual de Maringá para a discussão de temas de Educação Médica, Educação das Profissões da Saúde e áreas correlatas. Blog of University of Maringá Medical School for the discussion of issues of Medical Education, Health Professions Education and related areas.
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015
Ensino Superior
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