CARTA DE PALMAS
A presente carta tem como objetivo apresentar breve relatório, para a divulgação do conteúdo das discussões sobre a longitudinalidade da Semiologia, debatidas no 1º Encontro Nacional de Professores de Semiologia Médica (ENAPS), na cidade de Palmas, Tocantins, no Auditório CUICA (Centro Universitário Integrado de Ciência, Cultura e Arte), da Universidade Federal do Tocantins, no dia 19 de abril de 2012.
A idéia do Encontro surgiu de trocas de mensagens eletrônicas entre professores de diferentes instituições e regiões do Brasil, desencadeadas com a liderança da Profa. Dra. Maria do Patrocínio Tenório Nunes (Universidade de São Paulo), preocupados com a observação, não sistematizada, sobre a aparente desvalorização da semiologia no ensino e na prática médica e da consciência de todos de que a semiologia é a ferramenta mais importante do médico, estabelecendo a relação médico–paciente, possibilitando diagnósticos e condutas, otimizando custos.
O tema central do Encontro foi abordado considerando três aspectos fundamentais da semiologia médica, a anamnese, o exame físico e o raciocínio clínico, apresentados a seguir:
O Ensino Longitudinal da Anamnese
A primeira mesa redonda para a exposição e discussão acerca do ENSINO LONGITUDINAL DA ANAMNESE foi composta pelas explanadoras docentes: Jadete Barbosa Lampert (Universidade Federal de Santa Maria, atual presidente da ABEM – Associação Brasileira de Educação Médica),
Maria Helena Itaqui Lopes (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), Rutiene Giffoni Rocha de Mesquita (Universidade Federal de Roraima) e Eliana Mendonça Vilar (Escola Superior de Ciências da Saúde – DF), bem como a moderadora docente Rebeca Garcia de Paula (Universidade Federal do Tocantins) e a relatora discente Maíse Santana Tolentino Marciano (Acadêmica de Medicina‐ Turma V‐ UFT).
De forma abrangente, foi apresentada e debatida a importância da anamnese inicialmente na construção da relação médico‐paciente efetiva, como meio de estabelecimento de um pacto entre médico e paciente, mediada por habilidades de comunicação e relacionamento interpessoal
pautadas na escuta ativa, no interesse e respeito mútuo; em seguida, como elemento central do processo diagnóstico, orientando a realização do exame físico e a solicitação dos exames complementares pertinentes. Tais relatos foram fundamentados na proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs‐2001) e em estudos como o da Isabela Benseñor (USP‐2003) e de G. Sandler (Costs of unecessary tests – 1979).
Foram abordados ainda os aspectos sociais e psíquicos inerentes à interação médico-paciente e ao processo saúde‐doença que repercutem no processo do raciocínio clínico‐diagnóstico e são importantes na formação crítica e integrativa do estudante, a fim de se tornar um profissional seguro e autocrítico. Reforçaram‐se também questões relativas à coleta e registro dos dados, mediante o reconhecimento da importância da comunicação verbal e não verbal no contexto da entrevista clínica e da elaboração de uma redação que traduza o relato acurado dos dados fornecidos pelo paciente.
Foi discutida a desvalorização da anamnese, demonstrada pela realização de histórias clínicas cada vez mais sucintas e pela baixa produção de estudos sobre o assunto, além do problema do tempo versus a eficácia (a escassez de tempo destinado ao atendimento ao paciente por imposição
do sistema, que comprometem sobremaneira a qualidade da anamnese e, por consequência, a qualidade dos serviços. Estabeleceu‐se a importância da produção de trabalhos científicos sobre a eficácia e os benefícios da anamnese para que a Semiologia, dessa forma, seja valorizada e aplicada
em sua totalidade e abrangência (Produção de Conhecimento na Área como Estratégia de Valorização e Resgate da Anamnese).
Enfatizou‐se a necessidade de entender o indivíduo como um ser complexo (com valores, crenças, religião, convicções, incertezas e limitações sócio‐culturais que influenciam a tomada de decisão); o valor de uma comunicação não meramente informativa; o valor de uma auto‐avaliação
(que até certo ponto deve ser ensinada ao aluno, para que este se torne um profissional autocrítico); a necessidade de a história ser bem escrita (a ponto de o prontuário refletir o ser humano em sua totalidade) e do treinamento dos estudantes para enfrentarem situações adversas e diferenciadas (por exemplo, paciente alcoolizado, paciente psiquiátrico, informação de óbito, más notícias, entre outros).
Finalmente, recomendou‐se a adoção da “Metodologia dos Quatro Hábitos”, baseada na publicação Patient Educ Couns. 2006 Jul;62(1):38‐45 The Four Habits Coding Scheme: validation of an instrument to assess clinicians' communication behavior.Krupat E, Frankel R, Stein T, Irish J. (Harvard Medical School); melhor supervisão e feedback do professor sobre o desempenho do aluno; feedback da atuação docente realizada pelo aluno; aprimoramento das estratégias de ensino para realização da anamnese, mediante a utilização de laboratórios de comunicação, uso de salas espelhadas, role play p. ex.; valorização e ensino de semiologia nas diversas disciplinas clínicas do curso ao longo das séries; valorização das discussões clínicas e estímulo ao desenvolvimento docente voltado para o ensino da semiologia.
Encerrou‐se com a abertura de debate para o público presente (docentes e discentes), que teceu considerações, adequadamente respondidas pelos integrantes da mesa.
O Ensino Longitudinal do Exame Físico
A segunda mesa redonda abordou O ENSINO LONGITUDINAL DO EXAME FÍSICO. A mesa foi composta pelos seguintes docentes: George Dantas de Azevedo (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Maria Goretti Frota Ribeiro (Universidade Federal do Ceará), Adriana Edelves Trindade Martins Carvalho (Universidade Federal do Tocantins). A moderadora foi a docente Viviane Tieme Kenmoti (Universidade Federal do Tocantins) e o relator discente Hamilton Franco Filho (Acadêmico da Turma IV – UFT).
Foram apresentados os objetivos da sessão com o intuito de refletir sobre o estado atual, os desafios e as estratégias para aperfeiçoar o ensino da semiologia, mais especificamente do exame físico. Relatou‐se então a importância da semiotécnica como cerne da formação médica. Contudo,
evidenciou‐se o curto espaço de tempo dedicado ao seu processo de aprendizagem. Por isso, foi enfatizada a necessidade de seu resgate no ensino médico.
O público foi questionado sobre a forma, o local e o momento em que se ensina a semiologia. Foi considerado que, embora haja hegemonia do hospital, também devem ser utilizados outros cenários, a saber, laboratórios de habilidades e atitudes, unidades ambulatoriais, de atenção básica entre outros.
As estratégias propostas foram: auxiliar o estudante a identificar áreas em que seja necessário maior estudo individual; oferecer, na matriz curricular, atividades práticas que desenvolvam habilidades desde o início do curso; proporcionar ao discente tempo para reflexão acerca dos aspectos vivenciados nas práticas. Para isto, é importante o trabalho com pequenos
grupos de estudantes para discussão das vivências, sendo esses momentos oportunidades fundamentais para estímulo e fomentação de discussões de aspectos éticos ligados às práticas profissionais, para estimular atitudes coerentes.
Enfatizou‐se ainda a importância da avaliação dos estudantes. Todavia, essa deve ser focada na prática, mediante pacientes reais ou simulados. Em seguida, foi realizada uma dinâmica em forma de um esquema de “bola de neve” (BIERNACKI & WALDORF, 198). A metodologia utilizada foi divisão da plateia em três grupos, sendo dois compostos por estudantes e um por professores. O primeiro grupo de estudantes recebeu a seguinte pergunta: Como os estudantes vivenciam o aprendizado da semiologia (enfoque no exame físico)? O segundo grupo de estudantes recebeu a seguinte pergunta: o que os estudantes esperam que o curso médico ofereça no ensino da semiologia para adequado exercício da prática profissional?
O grupo dos professores recebeu a seguinte pergunta: como articular longitudinalmente o ensino do exame físico e quais estratégias e desafios para isso? Cada um teve a oportunidade de pensar individualmente, seguindo‐se por uma discussão em duplas, quartetos e grupos maiores que
resultaram na elaboração de um condensado sobre os tópicos em debate, ou seja, uma resposta consenso por grupo.
Para a primeira pergunta, chegou‐se ao consenso de que as atividades ambulatoriais, embora pouco exploradas, são ricas para o ensino da anamnese, contudo o elevado número de estudantes por grupo prejudica o aprendizado. As enfermarias são locais onde há riqueza de sinais clínicos, mas por se tratarem de pacientes por vezes com múltiplas intervenções , pode ser difícil o aprendizado.
No início do estudo da semiologia é necessária uma aula de exemplificação, da demonstração de como é o exame clínico e dos resultados esperados pelos professores, seja ela por meio de simulações ou em pacientes. É necessário direcionamento do exame físico na prática pelos
professores e também sobre quais dados semiológicos excluem a necessidade de quais exames complementares. Foi discutido sobre o início tardio do estudo da semiologia (em geral a partir do 6º semestre do curso) e por fim da necessidade de um feedback dos professores acerca do desenvolvimento do aluno durante a disciplina.
Quanto à segunda pergunta, os acadêmicos concluíram que a diminuição dos estágios ambulatoriais é um problema para a formação; o OSCE (Objective Structured Clinical Examinations) poderia ser utilizado não apenas como ferramenta de avaliação mas também de treinamento; é necessário um local apropriado nos diferentes locais de prática, para a discussão e, por fim, que a não padronização do que é esperado entre os professores configura uma dificuldade à concretização do aprendizado.
A respeito da terceira pergunta, os professores chegaram à conclusão que é necessária uma mobilização pela relevância da semiologia; que as atitudes adequadas ao exercício profissional devem ser desenvolvidas nos discentes desde o início do curso. As estratégias idealizadas foram: padrões de desempenhos a serem alcançados devem ser acordados entre os docentes; mudança no paradigma do professor como transmissor do conhecimento para facilitador do processo de ensinoaprendizagem; avaliação de tais processos de aprendizagem realizada por um comitê de avaliação composto por docentes e discentes; criação de oficinas de conhecimento e de novos cenários de aprendizagem; estabelecimento de um feedback bidirecional entre alunos e professores a respeito do que se ensina e do que se aprende; criação de um núcleo de conteúdo, habilidades e atitudes que adquire complexidade ao longo do curso e que deve ser continuamente avaliado de forma teórica e prática, por meio de avaliações escritas e de desempenho, com check list para verificar se o aprendizado está ocorrendo; estimular o conhecimento contextualizado à situação real avaliando não só a doença mas sim a pessoa em toda sua complexidade; trabalhar a capacitação e motivação do docente por meio de oficinas de desenvolvimento docente e valorização profissional.
O Ensino Longitudinal do Raciocínio clínico
Deu‐se o seguimento do encontro com a formação da mesa redonda para exposição e discussão do tema ENSINO LONGITUDINAL DO EXAME CLÍNICO, com a participação dos professores: Wilton Santos (ESCS), Maria Lúcia Bueno Garcia (USP), Maria Aparecida Barune (PUC‐ Campinas), Pompeu Ribeiro de Campos (PUC‐ Campinas). A moderadora foi a docente Olívia Maria Veloso Costa Coutinho e o relator discente, Hamilton Franco Filho (acadêmico da turma IV, da UFT).
Foi apresentado que o raciocínio clínico é um processo cognitivo que envolve o desenvolvimento de habilidades de entrevista, relacionamento médico‐paciente, exame físico e tomada de decisão, inerentes às condições do atendimento e a experiência pessoal do profissional.
Também que o os modelos de raciocínio clínico na prática podem ser divididos em analíticos e não analíticos. O primeiro inclui processo de dedução, onde o aluno/médico formula o diagnóstico e depois confirma com perguntas ao paciente e exames complementares e processo de indução, no qual o aluno/médico avalia os sintomas de maior relevância e confronta com demais alterações clínicas e laboratoriais para alcançar o diagnóstico de maior probabilidade. O modelo não‐analítico envolve o diagnóstico baseado em reconhecimento de padrões. Discentes e docentes ao longo das práticas utilizam simultaneamente os diversos modelos de raciocínio diagnóstico citados.
Foram tecidas considerações mostrando que o raciocínio clínico se desenvolve inicialmente pelo aprendizado formal em ambientes controlados, mas que se concretiza pela experiência clínica com os pacientes nos cenários reais de prática. O professor deve agir como catalisador e mediador do processo de construção da rede de conhecimento, bem como da organização desse conhecimento a ser feita pelo aluno.
O ensino longitudinal do raciocínio clínico apresenta desafios, pois é resultado da integração das diversas habilidades clínicas. Sua adequada avaliação envolve a identificação de etapas no desenvolvimento desse domínio de aprendizagem ao longo do curso. Essas etapas do desenvolvimento podem estar embasadas no tipo de diagnóstico requerido: topográfico, fisiopatogênico, sindrômico e etiológico; na estratificação dos casos em níveis de complexidade ou no grau de organização e estruturação das redes de conceito estabelecidas pelo estudante.
Destacou‐se ainda a importância que a atuação do docente esteja de acordo com as perspectivas de progressão e desenvolvimento do aprendizado do raciocínio diagnóstico estabelecidas no currículo.
Houve a abertura para participação do público presente. Neste momento foram feitas observações, a saber: a longitudinalidade do ensino pode apresentar dificuldades na implantação devido às diferentes opiniões de professores sobre o desenvolvimento e progressão do raciocínio clínico, sendo necessária uma uniformidade de pensamento para que a disciplina permeie outros anos do curso; a avaliação por meio da observação direta do discente pode ser utilizada, mas deve ser estruturada (instrumentos padronizados) especificando‐se claramente o que se espera do estudante, a fim de alcançar uma uniformidade nas avaliações; a semiologia deve resgatar os aspectos das áreas básicas como anatomia, histologia, fisiologia e patologia, promovendo a integração horizontal dessas disciplinas; a definição do raciocínio clínico como uma competência ou uma habilidade a ser desenvolvida no currículo pode alavancar seu aprendizado uma vez que enseja procedimentos para seu ensino e avaliação; a criação de uma nova disciplina sobre desenvolvimento do raciocínio clínico pode ser útil para garantir que todos os alunos tenham acesso ao bom desenvolvimento do raciocínio clínico; o volume de conteúdo apresentado ao aluno deve ser
definido nos diferentes momentos do curso, evoluindo de complexidade com o tempo de curso; os estudantes devem ser alertados sobre a importância de histórias bem elaboradas, cuidado com diagnósticos pré‐estabelecidos pelo paciente, a construção positiva que diferentes pacientes
constroem, pois cada um vivencia a doença de forma diferente e pode apresentar características específicas; a semiologia é propriedade de todas as disciplinas e deve ser praticada em todas elas, pois é inerente à prática diária do próprio médico/professor. Por fim, enfatizou‐se a importância do
estímulo à formação ética do estudante de medicina durante as práticas educacionais ligadas ao aprendizado da semiologia tanto no contexto da interação aluno‐paciente, quanto da interação aluno‐professor.
Plenária Final
Por fim, com o auxílio de todos os docentes e discentes presentes, decidiu‐se que o evento chamar‐se‐á, a partir de então, “Encontro Nacional dos Professores e Estudantes de Semiologia”, incluindo‐se estudantes ao tema (ENAPES), e que no próximo ano este será uma atividade pré-congresso do COBEM (tentar‐se‐á uma alternância entre encontros regionais, em todas as regiões do Brasil, e COBEM). Foi consultado um grupo de acadêmicos que se prontificou a desenvolver atividades de pesquisa no campo da Semiologia, cujo primeiro tema será O ENSINO DA SEMIOLOGIA NAS ESCOLAS MÉDICAS BRASILEIRAS, estudo descritivo.
Concluiu‐se que a Semiologia Médica, em face de sua importância fundamental na formação médica, deve ser ministrada e acompanhada por avaliações em todo o curso de graduação, sem ficar restrita à disciplina e aos professores de Semiologia.
Encaminhamentos‐chave
Considerando as questões abordadas, foram levantados pontos que emergiram como consenso do I ENAPES, para socialização com as escolas médicas brasileiras e o aprofundamento em eventos posteriores, tendo‐os como objetos de pesquisas. Os pontos de consenso foram os seguintes:
1. Resgate e ênfase da Semiologia como um dos núcleos básicos da formação generalista preconizada nas DCNs;
2. Inserção, desde o início do curso de graduação em medicina, da anamnese, exame físico e raciocínio clínico de forma longitudinal em todos os semestres/anos, com complexidade crescente e em diferentes cenários (atenção primária, urgência, emergência, etc.);
3. Inclusão da aprendizagem em situações específicas (doentes psiquiátricos, surdos‐mudos, etc.);
4. Envolvimento e participação de professores e profissionais de outras áreas (psicólogo, enfermeiro, sociólogo, etc.), considerando que o professor médico sozinho não é capaz de promover a aprendizagem em todas as dimensões, sendo necessários outros olhares sobre o cuidado;
5. Fomento a estudos e pesquisas sobre o ensino‐aprendizagem da Semiologia Médica no curso de graduação.
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